O Estado que falta cumprir
Já temos o PowerPoint do ministro. Os conceitos estão alinhados com as boas-práticas internacionais, tais como simplificação, interoperabilidade, “só uma vez”, avaliação de impacto e Inteligência Artificial. O XXV Governo apresentou a sua visão para um Estado moderno, digital e centrado no cidadão. Mas depois da apresentação, o que muda na prática?
A perceção que muitos cidadãos continuam a ter do Estado é a de uma máquina pesada, labiríntica, feita de filas de espera, formulários redundantes e plataformas que não comunicam entre si. Os funcionários públicos veem-se presos em tarefas mecânicas, sujeitos a regras absurdas e sistemas obsoletos. O Estado mais parece uma muralha do que uma ponte.
É verdade que há sinais de mudança. A Autoridade Tributária, por exemplo, tem sido exemplar na transformação digital, mas noutros setores, a modernização está muito aquém do necessário.
Na Justiça, persistem prazos longos, uma linguagem inacessível e uma fragmentação tecnológica que frustra qualquer tentativa de agilidade. Na Segurança Social, ainda se exige que os cidadãos provem o que o Estado já sabe. E na saúde, apesar do progresso digital na app SNS 24, os dados clínicos continuam dispersos e de- sintegrados, comprometendo a continuidade dos cuidados e acumulando desperdícios crónicos.
É precisamente nestes redutos de ineficiência que a transformação digital deve ser mais do que técnica, deve ser política e cultural. Não basta automatizar, é urgente construir uma arquitetura informacional do Estado, com repositórios únicos, interoperáveis, onde os dados circulam com segurança e sentido, para libertar tempo e capacidades humanas. Um Estado que trate os dados com inteligência permite aos seus profissionais disporem de tempo para mediar, acompanhar e cuidar.
Esta lógica deve também aplicar-se desde o primeiro momento a quem chega. A integração de imigrantes deve ser imediata, eficaz e universal, com controlo biométrico e atribuição célere de cartão de cidadão digital, permitindo a sua inclusão nos mesmos fluxos administrativos dos cidadãos nacionais. Sem necessidade de criar sistemas paralelos, sem labirintos específicos e sem confusões, nem atropelos com os processos de aquisição de nacionalidade.
Trata-se de inclusão funcional e não política, com controlo e respeito, que permite desde cedo acesso pleno a serviços públicos, trabalho digno e participação comunitária.
Imaginemos uma Segurança Social onde a elegibilidade a apoios é verificada automaticamente, mas onde um técnico tem tempo para perceber fragilidades adicionais. Uma Justiça onde os atos são digitais, mas em que o cidadão é escutado. Um sistema de Saúde onde exames e diagnósticos não se perdem entre instituições. Este é o Estado colaborativo e mediador que devemos exigir.
Não podemos esquecer soluções já legisladas, mas pouco aplicadas. O princípio “uma só vez”, aprovado em 2014, continua em grande parte por cumprir. O “Licenciamento Zero” e os Espaços do Cidadão são boas ideias que precisam de escala, ambição e coragem. E tudo isto requer perfis novos no setor público, incluindo pessoas com competências digitais, mas também com empatia e pensamento crítico.
Reformar o Estado não é apenas reduzir papel, é aumentar a presença, a escuta e a capacidade de resposta. Um Estado que simplifica não desiste de fiscalizar e deve focar-se no essencial. Um Estado que aposta na transparência não teme ser avaliado. E um Estado que valoriza os seus profissionais não os transforma em robôs administrativos.
O PowerPoint está feito. Agora falta cumprir e fazer com que o cidadão, nacional ou recém-chegado, sinta que o Estado está onde é preciso, sem barreiras inúteis, nem exclusões invisíveis. Só assim a reforma deixará de ser uma promessa, para passar a ser uma prática reconhecida por todos.
Especialista em governação eletrónica