O esplendor do caos: Ressentimento, ódio e ignorância

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Só é possível resgatar a democracia portuguesa se fizermos uma análise profunda (quase apetece dizer, de teor psicanalítico, como a que Eduardo Lourenço propôs em O Labirinto da Saudade) quanto a aspectos recentes que têm vindo a descaracterizar-nos como colectivo. A essa análise deve presidir um verdadeiro espírito de combate por qualquer coisa mais que não é só a democracia e a liberdade, o SNS e a escola pública, mas sim a nossa própria existência enquanto portugueses. Tanto mais portugueses quanto acolhedores de outras culturas que aqui vivem connosco. A essa análise, porém, não devemos antepor qualquer idealismo e, seja à esquerda ou à direita, o que urgentemente se exige não é qualquer revisão constitucional, como a que a Iniciativa Liberal promete só para dizer que existe e que os seus próprios resultados não foram - como são - uma derrota. E é talvez por aí que podemos começar: que significa um partido destes num país em que as tradições liberais são, no mínimo, excreções de certas épocas da nossa História? Eram Garrett ou Fontes Pereira de Melo liberais (eles, combatentes pelo liberalismo como poucos foram)? Eram liberais, nas posições político-económicas homens como Francisco Sá-Carneiro, Balsemão ou, antes deles, Maria de Lourdes Pintassilgo?

O problema está em que, com décadas de cavaquismo e com a abertura do socialismo à chamada 3.ª via, as políticas neoliberais, de importação anglo-americana, vieram fazendo o seu caminho: com Thatcher o sistema de saúde britânico - uma das grandes conquistas pós-45 - eclipsou-se. Hoje só quem tem dinheiro pode almejar a ter assistência médica - pagando bem. As políticas neoliberais, com um Reagan que levou mais de cinco anos a admitir que a sida era um problema de Saúde Pública nessa década de recuos sociais que foram os anos de 1980, feriram de morte sindicatos e organismos de defesa do bem comum. Quer dizer: quando Eisenhower, em 1959/60, preparando Kennedy, considerou que era preciso que a democracia jamais ficasse nas mãos dos interesses do complexo industrial-militar, sabia do que falava: da consolidação do neoliberalismo, o qual, no nosso tempo, teve a melhor síntese do que verdadeiramente é nas palavras do papa Francisco: “O neoliberalismo é a economia que mata.” Mário Soares, por diversas vezes, vituperou a realidade da União Europeia: um conglomerado de tecnocratas que, desvirtuando o projecto de W. Brandt, Adenauer, Olof Palme, entre outros (Delors terá sido o último desse filão de políticos para quem a Europa era, para si, cumprir solidariamente), em vez dos povos europeus, em vez do humanismo, preferiam a lógica americana: a política nas mãos do dinheiro e, por isso, usou da metáfora: estávamos, nos primeiros anos de 2000, reféns de uma “economia de casino”.

Pois bem, em termos mentais, sócio-culturais, a ascensão da extrema-direita em Portugal deve explicar-se precisamente com base nas políticas neoliberais que enfraqueceram as políticas públicas. Não é preciso dizer que a banca e os privados, nos mais diversos sectores, viram quintuplicados os seus lucros. Não é preciso lembrar que a banca ganha - por dia!! - 13.000.000 de euros. A questão é mental, é de valores, mas não só financeiros. Para que Portugal possa vir a ser um país respirável, e, em 2070, um país onde as desigualdades não redundaram num quotidiano policial e violento (é para aí que caminhamos e essa estrada é a que o Chega verdadeiramente almeja, pois governar na anarquia é o sonho de qualquer fascismo, fingindo-se ser regime de ordem que, na essência, é a desordem social, a inversão e corrupção de toda a lei), só mesmo um exame - uma biópsia, como propõe Eça em Os Maias (1888) - urgente, de modo a que possamos entender as causas da nossa congénita decadência. Tenho dito e escrito: é de natureza ética a degradação social e política, económica e cultural que temos vivido. Sobretudo nos últimos 25 anos, à medida que foram sendo substituídas as gerações de decisores políticos. Que comparação um Francisco Lucas Pires com um Paulo Rangel? Que comparação um Hernâni Lopes com um Sarmento do actual Governo? Podíamos ir mais longe. Mas a questão é que o povo reproduz, ou espelha, no esplendor do caos consumista e aviltante em que vive, a qualidade dos políticos que elege. Há uma doença mental, que também de carácter, a corroer o modo como o português comum vota: se André Ventura não recolhe sequer 10% de votos nas zonas urbanas mais escolarizadas e onde se vive melhor, é nos bairros pobres das grandes cidades, é nesse Portugal rural abandonado à droga e à alienação dum marasmo que prostitui qualquer ideal de vida, que Ventura e a sua soldadesca cresce.

A questão é, de facto, de educação, de pedagogia. A nossa crise estrutural é de natureza mental. Isso vê-se no provincianismo das decisões políticas, sejam as efectivas ou as simbólicas (na Expo de Tóquio Portugal elimina a língua portuguesa em prol de tudo estar escrito em inglês!!). Estamos, como viu Eduardo Lourenço, reféns de um conceito: o de caos. Um caos que habitamos como se fosse o próprio esplendor. Porquê? Porque não houve, da parte do PS e do PSD, mas também de outras forças da esquerda (o PCP que teve autarquias nesse Alentejo dos anos 80 e 90 e 2000), o cuidado de salvaguardarem, com políticas sociais fortes e com política cultural digna desse nome, a própria essência do que significa viver-se em comunidade. Isso requer uma ética que em Portugal não existe: o português que vive dos subsídios, dos baixos salários, de horários laborais absolutamente esmagadores; as elites que têm casas na costa alentejana, propriedades luxuosas aqui e ali, as cúpulas dos partidos, há muito sem leituras e estudo regular das várias realidades do país, isso só se resolveria se e só se admitíssemos a podridão em que nos deixámos atolar.

Consumismo, acriticismo, gerações inteiras escolarizadas, mas absolutamente acéfalas, raptados pelo digital, à mercê do americanismo mais animalesco - o trumpismo de que a IL é a faceta hipócrita e o Chega a faceta bruta -, tudo se encaminha para um beco sem saída: um Portugal bestializado, na cauda da Europa para sempre, com as elites olhando sobranceiramente um povo que por detestarem ignoram e por ignorarem, detestam. Assim, não há política alguma, mas só taticismo, calculismo. Assim, sem valores a não ser o valor do dinheiro, que Portugal senão aquele que irá nascer do ódio, da ignorância e do ressentimento?

Professor, poeta e crítico literário

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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