O discurso de Biden
Joe Biden discursou pela primeira vez no Congresso e assumiu o duplo teste que o país enfrenta: à regeneração da sua democracia e ao seu papel no mundo. Isto é uma inversão face à proposta de Donald Trump, que desvalorizava o pluralismo democrático e cuja tipologia de poder mais apreciada roçava escandalosamente o autoritarismo, considerada em muitas dimensões a fórmula mais indicada para manter a América no topo. Neste sentido, Biden acaba por retomar dois caminhos que marcaram algumas administrações no passado recente.
Primeiro, será a reconstrução económica e social americana a ditar a saúde da sua democracia, sendo este o único regime capaz de assegurar a primazia do país na globalização, contrariando a competitividade trazida pelo modelo chinês. Segundo, a regeneração da democracia americana só pode ser feita através de um estado federal que proteja, distribua e combata desigualdades económicas, sociais, raciais e fiscais. Por outras palavras, depois de Roosevelt e Lyndon Johnson, Biden retoma a ideia progressista das grandes missões federais, propondo na prática a entrada numa fase mais ambiciosa da "grande sociedade".
A massificação da vacinação, em resultado do seu controlo federal, permitiu à administração duplicar as doses administradas face ao previsto para os primeiros cem dias de mandato. Esta sensação de domínio da situação tem sido fundamental para marcar mais uma diferença face à anterior administração: em vez de caos, profissionalismo logístico, em vez de descontrolo do calendário, antecipação da solução. Nos EUA, como em qualquer país massacrado pela pandemia, só o controlo sanitário pela eficácia da vacina permite anular o discurso negacionista, a pressão sobre os hospitais, o pânico social e abrir caminho rápido à normalização económica. Por isto, Biden adiou o discurso ao Congresso previsto para fevereiro, tendo conquistado espaço de controlo sanitário para compor uma proposta de atuação do Estado federal mais ambiciosa.
Parte dela estava já aprovada desde março e foi acolhida pela generalidade dos legisladores e dos cidadãos: biliões de investimento na proteção do emprego, na capitalização direta das famílias, na reindustrialização, na reconversão energética e ambiental, na competitividade digital ou na reconfiguração das infraestruturas nacionais. A isto Biden acrescentou no Congresso outra fasquia, de investimento igualmente avultado, mas que responde ao nível gritante de desproteção social e educativa a que a generalidade das famílias das classes média e baixa está sujeita. Regenerar a democracia passa também por criar um Estado social permanente que dilua desigualdades e responda condignamente ao que a pandemia expôs: uma classe média alargada sem rede de proteção à saúde, apoio à gravidez, à educação pré-escolar, à integração étnica. Mesmo que não colha apoio entre republicanos, coloca-lhes o ónus da perpetuação do risco social e da insensibilidade aos grandes dilemas da classe média, das mulheres e das famílias suburbanas ou de zonas industriais. O que está em cima da mesa é mais do que suficiente para manter a plataforma democrata unida até às intercalares de 2022.
Por fim, Biden defendeu no Congresso que só uma política externa apoiada pela classe média empoderada terá força para projetar a América na competição tecnológica global, na fixação de recursos financeiros e humanos, na atração de talento, e no alastramento das alianças aos vários continentes. É uma mistura de política externa ideológica e pragmática: os valores voltam a contar, mas sem competitividade interna dificilmente se mobiliza influência externa para limitar o poder da China. E esta é, independentemente de quem habite na Casa Branca, a grande estratégia permanente da América.
Investigador