O dinheiro voador

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O maior problema da política do Brasil desde a redemocratização de 1985, se excetuarmos os quatro anos anómalos de Jair Bolsonaro no poder, é a (falta de) qualidade do poder legislativo.

Sabe-o o antigo presidente Fernando Henrique Cardoso, que gastou metade dos livros de memórias a lamentar o apetite imoral dos parlamentares por dinheiro e honrarias.

Sabe-o Lula da Silva, cujos primeiros governos instituíram um Mensalão para, em troca de votos favoráveis aos seus projetos, saciar a gula dos congressistas.

Sabe-o Dilma Rousseff, que arriscou dizer uns “nãos” ao legislativo e acabou deposta por ele com a cumplicidade do vice.

Sabe-o Michel Temer, que, depois de gravado a pedir a um corrupto para pagar pelo silêncio de Eduardo Cunha, o promotor do impeachment de Dilma, foi denunciado pela PGR, mas salvo da deposição graças à mesma Câmara que depusera a antecessora.

E sabe-o Bolsonaro, que, para se precaver de mais de 60 pedidos de impeachment, combinou com os congressistas um Mensalão multiplicado por 1000: o “Orçamento Secreto” (ou Bolsolão).

O problema do “Orçamento Secreto” não é a palavra “orçamento” - está previsto em lei que os deputados possam aplicar recursos-extra do Orçamento de Estado, na base dos milhares de milhões de reais, nos seus redutos eleitorais - mas sim a palavra “secreto” - desde Bolsonaro que os deputados não precisam de explicar onde aplicam esses recursos.

Pelos vistos, em Pedreira, cidade de 39 mil habitantes do Maranhão, os recursos foram aplicados num aparelho odontológico, porque em 2021 foram extraídos 540 mil dentes, o que significa que, em média, cada cidadão arrancou 14 dentes, incluindo os bebés, que nem os têm.

Noutra cidade, realizaram-se 12,7 mil radiografias de dedo no mesmo ano. E, noutra ainda, foram comprados tratores 259% acima do preço de mercado.

Flávio Dino, ex-ministro da Justiça de Lula e atual juiz do Supremo, decidiu então, a pedido do PSOL, espécie de Bloco de Esquerda brasileiro, mandar que os deputados digam o básico: onde aplicam o dinheiro. Dada a recusa, considerou o “Orçamento Secreto” caso de polícia e chamou a polícia.

Esta começou, então, por investigar uma organização criminosa suspeita de atuar em fraudes licitatórias, corrupção, lavagem de dinheiro e desvio de 1,4 mil milhões de reais na aplicação secreta de recursos orçamentários numa operação que fez o Brasil assistir a uma cena de novela: assustado com a chegada dos agentes, o vereador Francisquinho Nascimento, primo de Elmar Nascimento, um dos deputados mais influentes de Brasília, atirou da janela de casa uma mala cheia de dinheiro para alegria de quem passava na rua.

É por causa de episódios como este protagonizados pelo maior problema da política do Brasil, a (falta de) qualidade do poder legislativo, que, de vez em quando, são eleitas anomalias, como Bolsonaro, a prometerem “acabar com a corrupção” que, no fim das contas, só a amplificam.

Jornalista, correspondenteem São Paulo

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