O Dia de Portugal e a responsabilidade da democracia
No passado 10 de Junho, Lídia Jorge ofereceu ao país um discurso de grande sobriedade e exigência, recordando que Portugal é, desde a sua origem, uma nação mestiça, construída a partir de encontros, desencontros e reconciliações. “Nenhum de nós tem sangue puro” afirmou ela, acrescentando que “cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou.” Pouco depois, o Presidente da República retomaria o mesmo tema, lembrando todos os povos que ao longo da História por aqui passaram e ficaram e concluiu dizendo que “não há quem possa dizer que é mais puro e mais português do que qualquer outro.” Esta consciência histórica, assumida sem nostalgia nem fraqueza, é o alicerce da nossa identidade democrática e antídoto contra extremismos identitários. Mas, nesse mesmo dia, as ruas de Lisboa e do Porto expuseram a negação dessa memória. No Monumento aos Combatentes em Lisboa, o Imã David Munir, líder da comunidade muçulmana, foi insultado com gritos de “traidor” e “não é a tua pátria”, acompanhados pela saudações nazi. Horas depois, à porta do Teatro A Barraca, um grupo organizado de extrema-direita atacou fisicamente o ator Adérito Lopes. E no Porto, voluntárias que distribuem comida pelos sem-abrigo da cidade foram acusadas de “incentivar a imigração”, insultadas e agredidas. Estes episódios não foram incidentes isolados. Antes constituem manifestações públicas e deliberadas da rejeição dos valores fundamentais da democracia plural. No mesmo dia, vivemos duas faces da nossa realidade. De um lado, o reconhecimento da diversidade como traço fundador da nossa comunidade e, do outro, a tentativa violenta de impor narrativas de pureza racial e cultural incompatíveis com o Estado de Direito. Estas agressões não visam apenas quem as sofre diretamente mas são ataques organizados à própria democracia. As democracias estão sob ataque e a Nova Zelândia tornou-se a uma referência ética e política. Em 2019, na cidade de Christchurch, um racista assassinou 51 pessoas em dois ataques coordenados contra fiéis muçulmanos. Foi um dos atentados mais brutais de ódio racial e religioso da história recente.
Perante esta tragédia, a Primeira-Ministra Jacinda Ardern respondeu com um humanismo resoluto e firme: condenou o ódio sem ambiguidades, acolheu com empatia as comunidades atingidas, recusou amplificar a mensagem do agressor, legislou rapidamente para restringir o acesso a armas de guerra e uniu a sociedade numa rejeição inequívoca da intolerância e da violência. Foi uma liderança serena mas determinada. Precisamente o tipo de resposta que as democracias exigem quando confrontadas com o extremismo organizado. Portugal não está imune. Os sinais estão aí.
O 10 de Junho de 2025 ficará como o retrato desta encruzilhada entre a memória que une e a negação que procura dividir. Quem acredita na democracia não pode baixar os braços, ceder ao cansaço ou normalizar o inaceitável. Perante esta realidade, não há espaço para hesitações ou neutralidades. A defesa da democracia exige mais do que palavras corretas e gestos simbólicos. Exige coragem política, firmeza institucional e mobilização cívica ativa. Como a Nova Zelândia mostrou, a democracia não se defende apenas com indignação. Defende-se com humanidade e compaixão tranquilas, com decisão justa, com mobilização firme e com a coragem de agir enquanto ainda é tempo.