O custo de viver

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O novo Orçamento de Estado procurará certamente responder à subida de preços, mas é impossível escapar à pressão, seguramente em parte especulativa, do custo de vida. Energia e bens alimentares estão nessa primeira linha dos aumentos, sentidos por todos e naturalmente mais por aqueles para quem chegar ao fim do mês é um desafio financeiro.

Sabemos bem que os Portugueses são dos melhores gestores do mundo: conseguem, com salários baixos e preços no consumo muitas vezes acima da média europeia, fazer alguns milagres. Mas a grande ameaça estrutural para os tempos que aí estão e os que aí vêm é a do aumento da desigualdade, um traço característico desta nossa sociedade e que não se conseguiu ainda fazer retroceder de forma decisiva. Esta é uma comunidade a dois tempos e duas medidas, onde o trabalho é fracamente remunerado e a ascensão social e financeira ainda fortemente condicionada pelo ponto de partida de cada um.

Se a educação se generalizou de um modo eficaz nas últimas décadas, partindo de uma situação deplorável por altura do 25 de abril, e foi decisiva para a melhoria global das condições de vida, não representou ainda um conforto e uma perceção de justiça para muitos dos beneficiários desse novo tempo. A pressão e a instabilidade laboral, a escassez na retribuição, o custo da habitação - como não responder com contração demográfica, emigração ou economia paralela?

Numa cultura contemporânea de insatisfação permanente, de fluidez e de consumo como constitutivo da identidade, tudo remete para a terciarização, não só das atividades económicas, como também das pessoas. As pessoas são afinal serviços, os que podem prestar e encadear em seguida como consumidores, e nessa medida estruturalmente identificadas.

Há mais de uma década, o falecido médico e professor sueco Hans Rosling, numa conferência que ficou famosa, demonstrava, através de dados, como já não existiria "primeiro mundo" e "terceiro mundo", dada a performance económica e social de vários espaços geográficos no último meio século, que os aproximou de padrões de vida ocidentais, desde logo na Ásia e, em particular, na China. Mas a ocidentalização de padrões de consumo e o acesso mais facilitado a bens essenciais por parte de novas centenas de milhões de pessoas não significou necessariamente a generalização de práticas sociais ou laborais decentes ou a opção por modelos democráticos e livres na organização política.

Dir-se-ia até que o trade off foi muito claro: a melhoria económica estatística de diversos países, tornados produtores globais de mão-de-obra ou de matérias-primas, significou também o contínuo aprisionamento da capacidade de decisão e da liberdade individual de quem lá vive. Assim, nem no primeiro mundo remediado português, nem nos espaços de submissão a um modelo de desenvolvimento económico que simultaneamente os valoriza e subjuga, a perceção de justiça e de liberdade reverte a favor das pessoas.


Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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