O crime sem vítima do qual todos somos vítimas
Esta semana é copiosa no tema da corrupção. Disclaimer: à hora em que a signatária subscreve a presente crónica ainda não era conhecida a decisão instrutória que definirá o futuro da Operação Marquês.
Entretanto, foi justamente nesta semana que o governo tornou pública a ansiada Estratégia Nacional de Combate à Corrupção que, por ser virtuosa, peca por tardia.
O documento mereceu debate e foi alvo de consulta pública, como não poderia deixar de ser. Se o fito é combater a corrupção e a criminalidade económica, deve-se envolver, integrar e comprometer toda a sociedade civil.
A corrupção é, geralmente, um crime sem vítimas - nem o corruptor nem o corrompido o são. Todavia, a sociedade como um todo é a maior vítima da corrupção. Os cidadãos afastam-se das instituições democráticas e dos decisores políticos e ficam mais permeáveis a populismos que costumam ser muito férteis nesse ambiente de descrédito no regime.
Não admira que os Estados que se querem desenvolvidos, assim como as organizações internacionais, assumam o combate à corrupção como uma prioridade mister e Portugal não é exceção. Aliás, este governo inscreveu-o no seu programa, entre os objetivos que considera prioritários. Todavia, a legislatura já leva um ano e meio e, ao contrário do que se possa pensar, este documento mais não é do que um caderno cheio de intenções. Boas intenções, é certo, mas meras intenções.
As reflexões e medidas que a Estratégia encerra têm ainda de se concretizar em iniciativas legislativas e ações concretas nas mais diversas áreas da atividade política, administrativa e privada - e isso demorará anos! Anos que Portugal não tem se se quiser assumir, junto dos seus pares, como um país livre, igualitário, democrático, transparente e competitivo. Esse comboio já o perdemos faz tempo...
Um país onde a corrupção prolifere e onde o Estado de direito não se consiga concretizar afeta todos os agentes económicos. A corrupção que não se consiga evitar - através do reforço de mecanismos de transparência na ação pública, p. ex., - tem impacto financeiro direto nas contas do Estado. O dinheiro que circula em bolsos alheios é receita do Estado perdida que podia ser investida ou canalizada para outros fins. Além disso, ninguém gosta de investir em países onde a justiça é burocrática e lenta e onde a corrupção não seja eficazmente prevenida e punida.
Saiba que em 2018 foram registados 2586 novos inquéritos por crimes de corrupção ou conexos, mas apenas foram deduzidas 170 acusações. 33 processos foram suspensos provisoriamente e 1152 foram arquivados. Dos escassos 170 processos em que se produziram acusações não se sabe quantos chegaram efetivamente à fase de julgamento e, em virtude disso, quantos resultaram em condenações ou absolvições.
No ano seguinte, em 2019, o número de novos inquéritos desceu, mas a diferença é ténue. Ainda assim, tanto pode ser bom como pode ser mau. Menos inquéritos não significa, forçosamente, uma descida da criminalidade. Pode refletir uma enorme falta de meios (tanto materiais como humanos, técnicos e multidisciplinares e de cooperação judiciária internacional) que há já muito tempo vem sendo denunciada pelas polícias e pela magistratura.
Como referi acima, quando esta crónica for publicada, a decisão instrutória da Operação Marquês, o processo que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates e outras personagens sobejamente conhecidas do panorama político, bancário e empresarial português, já será conhecida.
Importa reforçar que essa decisão não significa o fim do processo. A comunicação social tem o dever e a enorme responsabilidade de informar com seriedade sobre o que a decisão instrutória significa e implica.
Os crimes de corrupção de que José Sócrates está acusado não contêm, alegadamente, prova direta. Porém, não podemos ignorar que uma improvável (e diria até chocante) decisão de não pronúncia do Juiz Ivo Rosa abrirá ainda a possibilidade de o Ministério Público recorrer.
É inquestionável a responsabilidade que os media têm na concretização do direito constitucional de informar, sem impedimentos nem discriminações. A relação dos media com a justiça deve assentar no primado da verdade, sem prejuízo do respeito pela presunção de inocência.
Já o poder executivo deve ser exemplar na ação política.
Despedir a ex-PGR Joana Marques Vidal, viciar o concurso para o procurador europeu, nomear, sem qualquer pejo, o ministro das Finanças para governador do Banco de Portugal e insurgir-se frontalmente contra obrigar políticos a declarar ligações a associações como a maçonaria não é um bom começo de conversa.
Deputada do PSD