O conclave, a ONU e a luta pela dignidade humana

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Esta é a semana do conclave que irá eleger o sucessor do Papa Francisco. Pode acontecer que na sexta-feira, o dia da publicação deste meu texto, já seja conhecido o nome do novo líder da Igreja Católica. O colégio cardinalício é composto por personalidades bastante marcantes, muitas delas promovidas por Francisco. A minha previsão é que a escolha terá lugar sem grandes demoras.

Por coincidência, a edição 2025 do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, que é o documento anual mais relevante produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), também foi dado a conhecer esta semana. Como sempre, é um relatório que reflete com objetividade a situação socioeconómica das nações. Este ano a mensagem central é bem clara: estamos a recuar no que respeita ao bem-estar das populações com maiores dificuldades. Daqui resulta um alargamento das disparidades entre os países mais desenvolvidos e os mais pobres. Parafraseando o relatório, os anos recentes têm seguido um rumo inseguro, problemático e crescentemente vulnerável a todo o tipo de choques. Acrescentaria que nos sentimos cada vez mais distantes em relação aos dramas alheios. A indiferença, a insensibilidade e o individualismo desmesurado marcam as tendências atuais. A promoção do egoísmo e da desumanidade fazem ganhar votos.

Avançam, esses sim, infelizmente, o alheamento perante a pobreza de muitos povos e a destruição da natureza, a competição hostil entre as grandes potências e a agressividade destas contra outros países, e o desprezo pelos valores universais. Não se vislumbra líderes reconhecidos que saibam falar destes retrocessos com coragem e credibilidade. Não quero mencionar nomes, mas interrogo-me se o próximo Papa terá essa força?

O sistema das Nações Unidas deveria tê-la. Mas a Organização atravessa um período de grande fraqueza, que resulta fundamentalmente de duas pechas atuais na diplomacia internacional. Por um lado, temos o desrespeito absoluto pelo papel e as resoluções das Nações Unidas por parte de duas administrações de topo na escala global: a russa e a norte-americana. E para que não haja dúvidas sobre o desdém perante as normas internacionais e o menosprezo perante os direitos humanos que a ONU defende, a elas se juntam os Estados seus clientes, como por exemplo a Bielorrússia, Israel e vários outros. Por outro lado, sublinharia a falta de iniciativa e de tacto político da liderança executiva das Nações Unidas, que até parece pensar que a sobrevivência da Organização e dos seus altos cargos passa pelo seu silêncio.

Perante a gravidade das crises existentes, o silêncio é um erro imperdoável. Basta voltar a ler a Carta das Nações Unidas e ter presente que o planeta se transformou numa aldeia partilhada por todos. Quem exerce funções de responsabilidade, e acredita no valor da dignidade das pessoas, não pode ficar mudo perante a violência dos agressores, a miséria de meio mundo e a destruição do meio ambiente e da vida futura na Terra. Esse é o critério absoluto que define a qualidade da liderança, quer se trate de um novo Papa, um novo Chanceler, ou de qualquer outro responsável com poder – e o poder tem muitas facetas, incluindo o acesso ou não à comunicação social.

A liderança só tem sentido se for exercida na fronteira da vida, na linha da frente que diz não aos ditadores, aos corruptos e aos narcisistas. Gostaria que essa fosse a linha diretriz que guiasse Roma, Nova Iorque, Bruxelas, Genebra, Adis Abeba e outras partes do mundo, onde se acredita na democracia, na cooperação entre os países e numa solução cooperativa para os problemas globais. Claro que deveria ser igualmente válida em Beijing, Moscovo e Washington – e essa aspiração não pode ser vista como impossível.

A Assembleia Geral das Nações Unidas poderá ser comparada, embora imperfeitamente, ao Conclave de Roma. Deve ter como objetivo fundamental a globalização da solidariedade. Ou, dito de outra maneira, promover o progresso e evitar a competição desregulada entre os Estados.

Os defensores da teoria do realismo político pertencem ao passado. As armas e a tecnologia de hoje já não permitem essa opção. Com a capacidade destrutiva que existe atualmente, essa teoria levaria pura e simplesmente à multiplicação de tragédias como a de Gaza e a crimes de agressão, como acontece há anos na Ucrânia. Quem pensa nas relações internacionais em termos de força finge não perceber o mundo em que nos encontramos. Ou então, acredita que o nosso planeta só serve para o benefício de umas dúzias de privilegiados.

Nesse contexto, o Conclave em Roma e outros esforços conjuntos de boa vontade devem ter como objetivo compreender, explicar e resolver os desafios atuais. Assim se barra o passo e expulsa do poder os retrógrados, os criminosos políticos e os utopistas do infantilismo social, e se reforça o equilíbrio, o bom-senso e o respeito pelos valores universais e pela paz.

Conselheiro em segurança internacional.

Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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