O compromisso assumido por Portugal é, no mínimo, uma desilusão
Desilusão é, no mínimo, o que se sente quando temos acesso aos compromissos que Portugal assumiu durante a primeira Conferência Ministerial sobre Violência contra Crianças, decorrida recentemente em Bogotá, na Colômbia.
A violência afeta, segundo estimativas recentes, mil milhões de menores em todo o mundo. E foi neste contexto, com o objetivo de proteger todas as crianças contra todas as formas de violência, que mais de 100 países assumiram um conjunto de promessas para reforçar a luta pelo fim desta realidade global, que não conhece qualquer tipo de fronteiras.
Pensando apenas nos nove países de língua portuguesa que estiverem presentes, vemos Angola e Moçambique comprometerem-se com maiores investimentos para garantir a proteção infantil e as intervenções destinadas a prevenir e responder à violência contra crianças.
Cabo Verde promete reforçar as medidas para eliminar a prática de castigos corporais até 2028, procurando criar ambientes mais seguros em comunidades vulneráveis.
Por sua vez, a Guiné-Bissau tenciona implementar um programa nacional de educação parental até ao final do ano de 2030, com especial enfoque na prevenção da disciplina física. Assume ainda o compromisso de prevenir a violência contra as crianças nas escolas, incluindo a violência baseada no género e o bullying.
Timor-Leste foca-se em promover a segurança digital nas escolas, prevenir a violência doméstica e alargar programas de educação parental a nível nacional para todas as comunidades, bem como investir na especialização de funcionários de Justiça em casos que envolvem crianças.
O Brasil pretende promover ambientes escolares mais seguros e prevenir todas as formas de preconceito, discriminação e intolerância, reforçar a prevenção de homicídios e a proteção social no âmbito da política de drogas, melhorar o sistema de verificação de idade em ambientes digitais para limitar o acesso de crianças e adolescentes a conteúdos impróprios e, ainda, implementar um protocolo nacional unificado para o atendimento de crianças e adolescentes que são vítimas de violência, também no mundo digital.
A Guiné Equatorial reconhece a importância do serviço social de proteção infantil e pretende expandir o apoio jurídico, médico e de saúde mental e psicossocial a todas as crianças que sofreram violência.
Por sua vez, São Tomé e Príncipe quer apostar na formação contínua dos diversos profissionais que compõem o Sistema de Proteção à Criança, uniformizar estratégias de discussão, coordenação, implementação e disseminação de serviços e redes de proteção para crianças e adolescentes e, ainda, implementar nos tribunais espaços especializados para escuta das crianças que são vítimas ou testemunhas de violência. Este país pretende ainda incluir no currículo escolar temas sobre políticas de proteção aos direitos das crianças e adolescentes, com foco na violência sexual.
Portugal comprometeu-se apenas a rever a ferramenta de avaliação do risco de violência doméstica em vigor desde 2014, de modo a garantir que permanece eficaz e relevante.
Perante este cenário, penso que podemos afirmar que, no nosso país, os direitos das crianças estão mais do que garantidos. Temos políticas de investimento capazes de dar resposta às necessidades identificadas, os profissionais das mais diversas áreas estão todos especializados nestas matérias, existem programas de prevenção primária, a nível comunitário, de todas as formas de violência, as famílias beneficiam de programas de acompanhamento ao longo do seu ciclo de vida e todas as crianças vítimas de violência beneficiam de processos de intervenção especializados.
Podemos ainda acrescentar que o nosso sistema de promoção e proteção é praticamente perfeito - as entidades que o compõem garantem a formação e a supervisão de todos os profissionais, trabalham de forma célere e articulada e as nossas crianças são, muito provavelmente, as mais protegidas do mundo.
Infelizmente, esta não é, de todo, a nossa realidade. O nosso sistema de promoção e proteção precisa de ser ajustado e melhorado e, apesar de não concordar com algumas das reflexões recentemente apontadas pela diretora-executiva da UNICEF em Portugal, sublinho a necessidade das recomendações sugeridas, nomeadamente, a realização de estudos de prevalência e de caracterização das diversas formas de violência, que permitam uma definição mais ajustada de políticas e estratégias de prevenção e combate à violência contra as crianças, bem como a criação de um organismo que garanta a implementação e monitorização de todas as medidas adotadas.
Há 34 anos, Portugal ratificou a Convenção sobre os Direitos das Crianças e, desde então, muito caminho tem sido percorrido. Mas muito falta ainda percorrer.
Neste contexto, o compromisso nacional agora assumido perante o mundo inteiro em limitar-se a rever a ferramenta de avaliação do risco de violência doméstica é, no mínimo, gerador de uma profunda desilusão.