O cavalo de Troia
Na rebelião húngara de 1956, barbaramente esmagada pela URSS, o teórico marxista Georg Lukács foi preso pelo KGB. Perguntado se estava armado, Lukács dirigiu calmamente a mão ao bolso e entregou ao oficial uma caneta. As palavras, ditas e escritas, contam. E a longa história de presos políticos, livros proibidos e queimados prova que todos sabem que as palavras podem ser uma arma.
Olhando já com alguma distância o que Ventura disse na AR, também sabemos que não se afastou muito dos dislates preconceituosos e provincianos que demasiadas vezes ouvimos no café ou no autocarro. A quem se indignou contra um alegado policiamento da linguagem e o regresso da censura, aconselho calma – não são as esquerdas representadas no parlamento que têm saudades do lápis azul, da PIDE ou dos seus bufos que relatavam as conversas entrescutadas. Os saudosistas desse país mesquinho e repressivo estão sentados exatamente do lado oposto do plenário.
Mas acontece que a AR não é a tasca da esquina (sem desprimor para as tascas…) – é casa da democracia. E por isso, o caso tornou-se problemático quando o Presidente da AR (PAR), em vez de advertir o líder do Chega ou responder às bancadas da esquerda de que faria uso das suas competências quando o entendesse, achou que esta era uma boa ocasião para fazer doutrina.
E sua doutrina é um desastre anunciado. Argumentar que a liberdade de expressão na Assembleia da República permite insultar um qualquer grupo social é abrir a porta à degradação do debate democrático. O que fará o PAR se, daqui a dias, um deputado disser que os ciganos são aldrabões, ou que os árabes são terroristas, ou que os judeus são gananciosos? Aguiar Branco já respondeu: não fará rigorosamente nada.
Para se distinguir de Augusto Santos Silva, Aguiar Branco achou que a estratégia para sossegar o monstro era ignorar as provocações. Desengane-se. Ventura construiu toda a sua carreira política às cavalitas dos insultos a grupos raciais. Primeiro, atacou os ciganos - chegou mesmo ao ponto de, durante a pandemia, propor um plano de contingência só para esta etnia, e confesso que não sei se incluía campos de concentração. Depois atacou os cidadãos de raça negra – exibiu no debate com Marcelo Rebelo de Sousa, nas presidenciais, uma fotografia do Presidente da República no Bairro da Jamaica e acusou-o de estar ao lado da “bandidagem”. Foi condenado em tribunal por ofensa e difamação. Disse que uma deputada negra devia ser “devolvida” a África. Agora, multiplica as referências a imigrantes e à “insegurança”. Não é defeito, é estratégia. E como, infelizmente, tem dado frutos, vai continuar a subir a parada e o insulto. Mais tarde ou mais cedo, Aguiar Branco vai ter de revisitar a sua doutrina ou arrisca deixar que o parlamento se transforme na cloaca do discurso racista da extrema-direita. Aliás, o PAR já deu um primeiro passo atabalhoado para continuar a lavar as mãos como Pilatos, advogando que o Parlamento faça uma votação imediata de repúdio, por proposta dos deputados que considerem uma intervenção contra terceiros, na AR, ofensiva ou injuriosa.
Na última década, a invocação da liberdade de expressão tem sido o cavalo de Troia nas democracias contemporâneas para a difusão do discurso de ódio contra vários grupos sociais. Há quase 80 anos, Karl Popper, pensador liberal, chamava-lhe o paradoxo da tolerância – pode uma democracia tolerante acolher o discurso intolerante? Concluía que não: “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.
Hoje, esta não é uma discussão meramente académica. Que se desengane quem pensa que estamos a discutir “opiniões”. Os incidentes de violência praticados por grupos ou militantes de extrema-direita têm crescido por toda a Europa na última década. Elementos da extrema-direita assassinaram já uma deputada trabalhista britânica e um eleito local alemão. Na Suécia, na ilha de Utoya foram assassinados 69 jovens do Partido Trabalhista por um louco inspirado nas teorias conspirativas da “grande substituição”, veiculadas pela extrema-direita. Na Alemanha, começou há dias o julgamento de um grupo de direita extremista que planeava nada menos do que um golpe de Estado. Há dias, um candidato alemão social-democrata foi espancado numa ação de campanha para as eleições europeias e houve uma tentativa de assassinato do primeiro-ministro eslovaco.
É por isso que o debate político por cá parece estranhamente ingénuo ou deliberadamente truncado. Invoca-se com gravitas a defesa da liberdade de expressão, mas pouco se diz sobre os sinais que se acumulam de que a normalização da extrema-direita é a porta aberta à violência política. Indignam-se contra o policiamento da linguagem, mas parecem não querer ver que não tem sido a esquerda “woke” a tentar silenciar os outros. Há poucas semanas, o lançamento de um livro da direita ultraconservadora, que queria mandar as mulheres de volta para a cozinha, decorreu sem incidentes. Mas vários lançamentos de livros e sessões sobre orientações sexuais e de género, pelo contrário, têm sido invadidos por homens em fúria a silenciar e intimidar os participantes. As deputadas portuguesas contam que na AR são chamadas de “vacas” e que a uma deputada negra dizem “boa noite” em pleno dia. Entra-se nas casas de imigrantes para os espancar e partilham-se vídeos de perseguições e agressões a migrantes nas ruas da cidade. Há espancamentos à luz do dia em ações de campanha da extrema-direita. E o Ministério Público, ainda preocupado com o que João Galamba comeu nos dois almoços que lhe foram pagos, pede a absolvição do polícia que deixou a cara de Cláudia Simões feita num bolo porque ela foi “exagerada”. Ontem, sem ironia, um homem aparentemente descompensado lançou uma ameaça de bomba à sede do Chega e foi levado pela PSP para tratamento.
A justificação política da violência gera violência. Se as instituições da democracia não quiserem ver o que temos pela frente, não resistirão à descida aos infernos. Não digam depois que não sabiam.
Investigadora do CES