O caso de Luís Montenegro e a defesa da política como serviço, não como martírio

Os casos recentes de Fernando Medina e Duarte Cordeiro deveriam servir de lição a muitos dos atores da esfera pública que promovem impunemente estas agendas, mas não se lhes conhece a humildade de reconhecerem os exageros, ou a capacidade de aprenderem com os erros.
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Confesso que tive dúvidas se deveria escrever este artigo, pois a minha intervenção pública não se debruça habitualmente sobre temáticas do foro nacional, muito menos político-partidário.

Mas hoje, uma pessoa anónima veio em meu socorro numa situação potencialmente lesiva dos meus direitos.

Não me conhecia, não me devia nada, e perdeu parte da sua manhã para testemunhar e assim garantir que as autoridades tinham os factos necessários para fazerem cumprir a lei.

No final, perguntei-lhe porque tinha feito isso?

A Liliana respondeu-me: "porque um dia se me algo semelhante acontecer a mim, gostava que alguém fizesse o mesmo". A Liliana, talvez sem saber, estava a praticar a essência do contrato social segundo Jean Jacques Rousseau.

A Liliana, ao abrir mão do seu tempo, expondo-se para proteger a igualdade de tratamento dos meus direitos, na crença ou expectativa de uma reciprocidade futura por outro qualquer cidadão, e em prol do bem comum, atuou como uma verdadeira democrata e humanista.

Cara Liliana, agora é a minha vez de fazer a minha parte, por outro cidadão, o Dr. Luís Montenegro, Primeiro Ministro de Portugal.

Num contexto político marcado por crescentes suspeitas sobre a vida privada de figuras públicas, o caso envolvendo o primeiro-ministro Luís Montenegro e a empresa familiar Spinumviva destaca-se como um exemplo paradigmático dos desafios que enfrentam as democracias modernas. A exploração partidária de supostos conflitos de interesse, muitas vezes desprovida de fundamentação jurídica sólida, não só ameaça a reputação individual de líderes eleitos democraticamente, mas também corrói a confiança nas instituições.

Do meu ponto de vista, o cerne da questão reside não na conduta específica do governante, mas na necessidade de reafirmar os princípios constitucionais que protegem os direitos individuais e a separação entre esfera pública e privada, tal como delineados por pensadores clássicos como Montesquieu e Auguste Comte.

Como bem me ensinou um grande professor de ciência política, "quando em dúvida, lê os clássicos".

Sobre a perspetiva dos direitos individuais e salvaguardas Constitucionais, a Constituição da República Portuguesa consagra, no seu Artigo 26.o, o direito à "reserva da intimidade da vida privada e familiar", estabelecendo que a lei deve garantir contra a obtenção e utilização abusivas de informações pessoais.

Este princípio, aliado ao Artigo 47.o sobre a "liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública", forma um alicerce jurídico que protege cidadãos – inclusive aqueles em cargos políticos – de intromissões arbitrárias nos seus assuntos particulares.

No caso da Spinumviva, empresa gerida por familiares de Montenegro, os dados divulgados sobre movimentações financeiras não indiciam, por si só, qualquer ilegalidade.

A insistência em transformar transações comerciais legítimas em escândalo político viola o espírito do Artigo 13.o, que proíbe discriminações baseadas em "situação económica" ou "condição social", e devia merecer o escrutínio das entidades competentes.

Montesquieu, na sua obra seminal O Espírito das Leis (1748), já alertava que a liberdade individual depende da separação estrita entre a pessoa pública e a privada. Desse ponto de vista, a tentativa de fiscalizar cada detalhe da vida de um governante, sem evidências concretas de delito, abre caminho para o despotismo sob o pretexto de transparência. "O poder deve limitar o poder", escreveu Montesquieu, mas essa limitação exige proporcionalidade: as investigações devem partir de indícios objetivos, não de suspeitas vagas alimentadas por rivalidades partidárias.

Este caso evidencia como estamos perante riscos de judicialização partidária, o que é contrário ao estado de direito democrático em que pretendemos viver.

Assim, o perigo da instrumentalização partidária e a degradação democrática leva qualquer cidadão a repetir na sua mente a pergunta clássica de Juvenal – Quis custodiet ipsos custodes? ("Quem vigia os vigilantes?")

Quando órgãos de fiscalização, como o Tribunal de Contas ou o Ministério Público, são pressionados a agir com base em agendas políticas, em vez de critérios técnicos, estamos ou não estamos a comprometer a própria noção de justiça?

A defesa da integridade pública não se faz através da vigilância total sobre líderes, mas sim fortalecendo instituições com mecanismos técnicos e imparciais.

Até ao momento, a crise em torno do "caso Montenegro " revela pouco mais do que uma manipulação, em que a pretensa busca por transparência se transforma numa ação de exposição seletiva, eticamente reprovável, e porventura até ilegal.

Auguste Comte, fundador do positivismo, argumentava que a estabilidade social depende da subordinação do indivíduo ao interesse coletivo. Contudo, essa subordinação não pode justificar a perseguição a cidadãos cujo único "crime" é conciliar sucesso profissional e serviço público. Como observou Filipa Calvão, presidente do Tribunal de Contas, Portugal sofre mais de "desleixo e falta de planeamento" do que de corrupção sistémica. Transformar empresários bem-sucedidos e/ou suas famílias em alvos preferenciais de escrutínio desincentiva a participação de perfis com essas competências no setor público, fragilizando a qualidade da governação.

Como podemos então atingir maior equilíbrio institucional no nosso país, se aceitarmos com o nosso silêncio autênticos atos de sabotagem da separação de poderes na nossa democracia?

A teoria da separação de poderes, tal como proposta por Montesquieu, não visa apenas evitar a concentração de autoridade, mas também proteger os cidadãos de excessos na fiscalização mútua entre poder Legislativo, Executivo e Judicial.

O filósofo enfatizava que o equilíbrio depende de que cada poder atue dentro de sua esfera de competências, sem usurpar funções alheias. No caso em análise, a insistência de alguns setores políticos em questionar a legalidade de atividades empresariais privadas – sem apresentar provas de irregularidades – configura uma invasão indevida do poder Legislativo no domínio do poder Judicial.

A Constituição portuguesa é clara: o Artigo 20.o garante "tutela jurisdicional efetiva" e o direito a "processo equitativo", assegurando que ninguém seja julgado por tribunal mediático. A exposição de detalhes da gestão da Spinumviva, antes mesmo de qualquer investigação formal, viola esses preceitos, criando um ambiente de linchamento público que Montesquieu identificaria como sintoma de degradação democrática.

Os casos recentes de Fernando Medina e Duarte Cordeiro deveriam servir de lição a muitos dos atores da esfera pública que promovem impunemente estas agendas, mas não se lhes conhece a humildade de reconhecerem os exageros, ou a capacidade de aprenderem com os erros.

A democracia exige transparência, mas esta não pode ser confundida com a vigilância permanente e abusiva sobre a vida privada dos governantes e suas famílias. A Constituição Portuguesa, inspirada nos ideais iluministas, estabeleceu salvaguardas precisas contra estes abusos.

Quando partidos ou outros atores na esfera pública transformam supostos conflitos de interesse – não comprovados – em armas de guerra política, estão a minar a própria instituição da democracia.

Como alertou Rui Lopes Ferreira, CEO do Super Bock Group, o excesso de burocracia e a judicialização da vida pública "criam barreiras ao crescimento". Se quisermos atrair os melhores talentos para a política, é imperativo distinguir entre legítima fiscalização e perseguição ideológica. A pergunta não deve ser "Quem vigia os vigilantes?", mas sim "Como vigiar sem destruir?".

A resposta está nos clássicos: equilíbrio, proporcionalidade e respeito inegociável pelos direitos individuais.

Obrigado Liliana.

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