O ator trans deve ser favorecido?
Quando William Shakespeare, o maior dramaturgo de todos os tempos, o autor de Hamlet, abriu em 1599 o Globe Theatre, onde apresentou as suas peças, os papéis femininos eram representados por atores masculinos - as mulheres, em nome da moral e dos bons costumes, não podiam fazer teatro e nem sequer assistiam às peças, pois só lá iam prostitutas ou mulheres que colocavam máscaras para não serem reconhecidas, tal era a censura social que recaía sobre as raparigas que se atreviam a desafiar tal convenção.
As mulheres no ocidente, entretanto, conquistaram o direito de serem atrizes. Mas demorou.
Na Inglaterra isso só aconteceu no final do século XVII. Nos domínios do Papa, em Itália, as mulheres só puderam ser atrizes no final do século XVIII e mesmo em Portugal essa proibição foi lei até à segunda metade do século XVIII, embora não fosse cumprida à risca já há algum tempo.
Na princípio da ópera barroca inventou-se a crueldade dos castrati: jovens que antes da puberdade eram castrados para ficarem com vozes efeminadas, normalmente equivalentes às mezzo-sopranos. Em alguns sítios as mulheres não podiam mesmo cantar em espetáculos, como nos já referidos Estados Papais, que só o permitiram, também, no final do século XVIII - até na dança, no ballet, essa proibição existiu em vários países.
Quando em 1900 a atriz Sarah Bernard fez o papel de Hamlet no filme Le Duel de Hamlet, fechou-se um círculo na afirmação do género feminino no teatro, não sem algum ruído de escândalo por ela estar a fazer de homem.
O espetáculo travesti, que no século XX seria utilizado como arma de afirmação dos direitos dos homossexuais, foi antes uma arma de discriminação dos direitos das mulheres.
"Como é que os negros conquistaram o direito de não serem ostracizados e vilipendiados no teatro norte-americano?"
O panorama é semelhante em relação ao racismo no teatro.
Quando vemos o primeiro filme sonoro, o Cantor de Jazz, de 1927, com o ator branco Al Jolson com a cara pintada de preto com carvão de cortiça (a chamada blackface, cara negra), com os olhos e os lábios contornados a branco, estamos a ver uma forma de espetáculo norte-americano, muito popular desde o segundo quartel do século XIX, a que se chama minstrel.
Nestes espetáculos - num tempo em que artistas negros não podiam pisar o mesmo palco de artistas brancos, o que só seria resolvido de vez já bem dentro do século XX - os afro-americanos assim representados eram sempre personagens estúpidas, incultas, aldrabonas, supersticiosas e musicais.
Só o movimento dos direitos cívicos dos negros dos Estados Unidos da América é que conseguiu acabar com o espetáculo minstrel, mas espetáculos com blackfaces tornaram-se, entretanto, populares em outros lugares, particularmente na Grã-Bretanha, onde a tradição durou mais do que nos EUA, sendo regularmente exibidos na TV em horário nobre até 1981.
E atenção: só neste milénio é que, nos Estados Unidos, começou a ser relativamente frequente atores negros desempenharem papéis de peças clássicas de personagens brancas.
Quando oiço um enorme e generalizado coro de críticas ao protesto da atriz trans Keyla Brasil, no Teatro São Luiz, que exigiu que uma personagem trans da peça ali em exibição fosse feita por uma atriz trans, vejo um problema generalizado de falta de memória.
Como é que as mulheres conquistaram o direito de serem atrizes? Não passou esse processo histórico, até se dar a volta e aceitar-se hoje em dia como "normal" homens e mulheres poderem fazer papéis de outros géneros, por protestos equivalentes ao de Keyla Brasil?
Como é que os negros conquistaram o direito de não serem ostracizados e vilipendiados no teatro norte-americano? Quantos atores afro-americanos não fizeram manifestações semelhantes à de Keyla Brasil?
E nem falo dos atores homossexuais, por falta de espaço.
O meu ponto é este: é evidente que a liberdade artística, num mundo ideal, não deveria ser atacada daquela forma; é evidente que estas lutas identitárias estão a enfraquecer a luta social de todos os desfavorecidos em favor de alguns desfavorecidos, criando divisões e inimizades entre explorados; é evidente que há uma repressão censória, brutal, agressora, violenta, que faz vítimas inocentes na reivindicação de Keyla Brasil... tudo isso é detestável, mas que alternativa lhes restam? Esperar mais de 300 anos, como as mulheres e os negros esperaram?...
Acho que o assunto exige mais de nós do que ir atrás do rebanho de opinadores de senso comum.
Acho que temos de pensar mais profundamente neste assunto antes de sentenciarmos, arrogantes, sobre qual é o lado certo desta questão - até porque, se calhar, não há.
Jornalista