O apocalipse pode esperar 

Publicado a

Espaço e tempo. Que mais há no cinema? Não muito mais, para dizer a verdade. O certo é que, num contexto saturado de sermões politicamente corretos, os filmes tendem a ser resumidos, promovidos e interpretados como objetos descartáveis. O seu suposto valor esgotar-se-ia nos “temas” com que podem satisfazer a avalanche mediática que contamina a nossa realidade, avalanche que se quer impor como a totalidade dessa realidade. 

No limite mais pueril, e também mais nefasto, desta miséria cinéfila, já terão nascido os/as “influencers” capazes de proclamar que O Mundo a seus Pés (1941) se esgota num panfleto sobre a liberdade de imprensa - como se isso bastasse para aceder ao génio de Orson Welles e, sobretudo, compreender a complexidade do seu legado formal, narrativo e existencial. 

Descrevo este estado das coisas para, face ao novo filme Kathryn Bigelow - A House of Dynamite/Prestes a Explodir (Netflix) —, eu próprio evitar ceder à facilidade de o esgotar na inquietação humanista que dele emana. Sim, é um facto que esta história assombrada - com o sistema de defesa dos EUA a enfrentar a ameaça de um míssil de origem desconhecida que está a 19 minutos de destruir a cidade de Chicago, provocando pelo menos 10 milhões de vítimas - contém uma contundente mensagem que não deixará ninguém indiferente. A saber: as armas nucleares podem destruir o nosso planeta. Mas como em tempos lembrava um verdadeiro artista: “se se faz um filme para mandar uma mensagem, mais vale usar o correio...” 

O mesmo helicóptero, mas a narrativa é outra...
O mesmo helicóptero, mas a narrativa é outra...

Acontece que não estamos perante uma vulgar saga apocalíptica, dessas que desembocam na chegada de um qualquer super-herói da Marvel para nos dizer (atenção à mensagem!) que o planeta está feito em cacos, mas anuncia-se uma nova era de felicidade... Que é como quem diz: ao espectador não é oferecida a gratificação simplista de um desenlace cuja única função moral (aliás, moralista) seria rasurar a perturbação com que tudo começou. 

Falemos, por isso, de espaço. Quanto mais os especialistas da sala de emergências da Casa Branca contemplam a rota abstrata do míssil apocalíptico (os ecrãs que têm à sua disposição são mesmo uma forma de fazer política), tanto mais as coordenadas espaciais se vão diluindo numa terrível generalização: o "além" do local do impacto confunde-se com o “aqui” da respetiva observação. Ou ainda: a globalização em que vivemos (a começar pela globalização militar) gerou um ecumenismo perverso em que todas as diferenças se equivalem numa só maneira de viver - e, claro, morrer. 

E não esqueçamos o tempo. Com uma agilidade rara no cinema do nosso presente, o argumento assinado por Noah Oppenheim, embora parecendo enunciar um ciclo de acontecimentos que só pode ter um final (a explosão do míssil), funciona, afinal, como uma máquina interminável de relançamento do pânico que a nossa civilização nuclear gerou. Assim, quando se chega ao fatal 19º minuto, a história “interrompe-se”, volta atrás e recomeça noutro lugar, com outras personagens. Ou seja: a contagem fatal voltou a zero, embora mantendo a barreira mortal dos 19 minutos... 

Lembramo-nos, por isso, da arte argumentativa de Joseph L. Mankiewicz (por exemplo, em A Condessa Descalça, um título de 1954) em que o tempo se repete como fantasma das suas próprias medidas - pode-se fugir de um espaço para outro, mas não é possível abrir a porta e escapar ao metódico fluir do tempo. E podemos recordar também esse filme genuinamente visionário que é Jogos de Guerra (1983), de John Badham, com o jovem Matthew Broderick num dos seus primeiros papéis, em que a civilização do virtual (entenda-se: dos computadores) vai fundindo todas as ações humanas numa ideia de “jogo”, precisamente, incluindo a experiência indizível da morte. 

O filme de Kathryn Bigelow é tanto mais envolvente quanto, de facto, o que nele vemos e ouvimos - das salas de controle militar até aos discursos codificados dos políticos - passou a fazer parte do nosso quotidiano televisivo. Não falta sequer o helicóptero presidencial em que, neste caso, o presidente dos EUA, interpretado por Idris Elba, é retirado para um lugar seguro. Dito de outro modo: a agitação no nosso espaço e os ziguezagues do nosso tempo obrigam-nos a repensar, seriamente, os usos da palavra “realismo”. 

 Jornalista

Diário de Notícias
www.dn.pt