O “animal feroz” em tribunal
O antigo primeiro-ministro José Sócrates começou finalmente a ser julgado, mais de uma década depois do início do Processo Marquês. A primeira sessão do julgamento ficou marcada por um pequeno braço de ferro de Sócrates com a magistrada que preside ao julgamento, o que lhe valeu uma repreensão. A certa altura, a juíza Susana Seca terá dito a José Sócrates que não são os arguidos que decidem quando podem falar e que estes devem respeitar o tribunal. Noutra ocasião, Sócrates saiu da sala sem pedir autorização à juíza, fazendo com que um oficial de justiça o fosse chamar para que voltasse ao julgamento.
Esta postura de “animal feroz” não surpreende. José Sócrates tem criticado fortemente a atuação da Justiça portuguesa, quase como se não lhe reconhecesse legitimidade para o levar a julgamento.
Por um lado, Sócrates tem argumentos válidos quando afirma que tem vindo a ser alvo de um julgamento público desde há vários anos. Houve violações do segredo de justiça, com a divulgação de escutas e outras informações. Houve alterações sucessivas dos crimes que lhe eram imputados. Houve ainda declarações infelizes, como as que o procurador-Geral da República fez recentemente, sugerindo uma inversão do ónus da prova, como se coubesse ao antigo primeiro-ministro provar a sua inocência, em vez de ser o Ministério Público a ter de demonstrar que é culpado. Como escreve o nosso colunista Pedro Tadeu nesta edição, provavelmente Sócrates não será uma vítima inocente, mas dificilmente terá um julgamento justo, porque já foi condenado há muito na praça pública.
Por outro, independentemente do direito à presunção de inocência no plano jurídico e criminal, que devemos sempre respeitar, existe uma dimensão ética que não podemos ignorar e que todos somos livres de avaliar. Vamos supor que o tribunal, após um longo julgamento, chega à conclusão de que Sócrates é inocente de todos os crimes de que é acusado. Ainda assim, neste cenário benigno, continuaríamos a ter um antigo primeiro-ministro que já admitiu perante a Justiça ter recebido 567 mil euros em alegados empréstimos feitos por um amigo empresário a quem pedia, regularmente, envelopes com “fotocópias”.
Ética significa não lesar. Ao agir desta forma, Sócrates traiu a confiança dos portugueses e contribuiu para o descrédito da classe política e das instituições. Deveria agora ser o primeiro interessado em ter um julgamento justo, que lhe permitisse esclarecer o que aconteceu, ainda que não tenha a obrigação de provar a sua inocência. Deveria também respeitar o tribunal e exigir ser tratado como qualquer outro cidadão, de maneira a que as questões políticas não influíssem no julgamento. Porém, no tribunal, Sócrates demonstrou que não se considera um cidadão igual aos outros. Que outro cidadão se lembra de sair do seu próprio julgamento sem pedir licença aos juízes? Que outro cidadão diz “tenho mesmo de responder?”, quando um juiz lhe pergunta a idade?
Como primeiro-ministro, José Sócrates revelou sentido estratégico e capacidade de decisão, que até os adversários lhe reconheciam. Ao fazer o “Simplex” e ao apostar nas renováveis e em infraestruturas essenciais que transformaram o país, Sócrates abriu caminho a que, duas décadas depois, Portugal possa receber grandes investimentos internacionais e até candidatar-se a uma gigafábrica de Inteligência Artificial. Mas a forma como será lembrado na História dependerá sobretudo de como vier a decorrer o julgamento do Processo Marquês. Seria positivo, para si próprio e para o país - que precisa de fechar este assunto e virar a página -, se Sócrates procurasse contribuir para um julgamento justo e célere.
P.S.: A morte de duas pessoas na flor da idade é uma tragédia a que ninguém pode ficar indiferente. Diogo Jota e o seu irmão, André Silva, eram dois jovens cheios de vida, que tinham muito para dar a Portugal e ao desporto que amavam, o futebol. Nenhum pai ou mãe devia ter de sepultar os filhos. O DN expressa sentidas condolências aos seus pais, familiares e amigos.
Diretor do Diário de Notícias