O amor como arma de recrutamento para o terrorismo
Dominika Egorova é uma bailarina russa treinada para seduzir e dominar. Jovem, bela, carismática e inteligente, é a protagonista da saga Red Sparrow, uma série literária da autoria de Jason Matthews, antigo oficial de
informações da CIA durante 33 anos. Adaptada ao cinema em 2018, com
Jennifer Lawrence no papel principal, Dominika, clássica femme fatale, representa um estereótipo conhecido no mundo da intelligence, mas nem sempre desfasado da realidade.
Certo dia, no ano de 1986, um diplomata português conheceu Renáta, uma “estudante” checa. Encantado pela beleza da rapariga - que, na verdade, era uma agente da polícia secreta da Checoslováquia (StB), antigo país satélite da URSS - passou uma noite com ela à revelia da esposa. Alheio ao esquema, e chantageado pelo StB com provas fotográficas do encontro e de alegado contrabando, tornou-se agente duplo e divulgou informação classificada sobre a NATO a Moscovo.
Sejam ficcionais ou não, estas figuras têm um elo em comum entre si: o amor. Amam uma causa e seduzem através do amor para coagir, recrutar ou recolher informações. Ao longo dos anos, esta técnica também tem sido utilizada por grupos extremistas, terroristas ou por redes de criminalidade organizada. Em um dos episódios da “Rota do Tráfico”, Mariana Van Zeller demonstra o funcionamento dos “esquemas de romance” no Gana, expondo a mestria dos criminosos no estabelecimento de confiança com a vítima até à chantagem monetária. Tudo feito via internet, com identidades falsas. Um método que se tem expandido por várias áreas geográficas. Em 2024, a polícia de Hong Kong desmantelou um esquema de fraude romântica que utilizava inteligência artificial para atrair vítimas, sobretudo homens. O esquema? Utilizar a imagem de uma “mulher atraente”. A nível global, estima-se que estas fraudes custem milhões aos lesados.
No âmbito dos grupos extremistas e terroristas, o “amor” é uma armadilha transversal a diversos quadrantes ideológicos, do jihadismo à extrema-direita.
No âmbito do jihadismo, distinguem-se métodos diferenciados consoante o género. Para os homens, a técnica propagandística recai sobre as “privações do Islão”, como a alegada abstinência imposta aos muçulmanos até ao casamento. A adesão ao Califado é retratada como uma oportunidade para disporem de “mulheres belas, virgens e muçulmanas”. Informações sobre a vida dos terroristas do 11/9 revelam que os indivíduos tinham aversão às mulheres, mas também um forte fascínio e desejo. Para as mulheres, a estratégia romântica é realizada com recurso aos “jihotties” (homens do Califado retratados de forma “viril” e “atraente”), sendo complementada com promessas de uma vida “pura” e “luxuosa”, incluindo alimentação e cuidados de saúde gratuitos.
No âmbito da extrema-direita, a instrumentalização do romance é ligeiramente diferente. Por um lado, é difundida uma mensagem de “empoderamento” com o recurso a imagens de mulheres envergando armas de fogo. Por outro lado, as mulheres são culpadas pelo insucesso deles nas relações amorosas, sendo este um gatilho para a adoção de comportamentos violentos. Esta narrativa tem sido particularmente associada à comunidade “incel”, um movimento online composto por homens - os chamados “celibatários involuntários” (ou incel) - que subscrevem uma visão do mundo misógina, legitimando a violação e outros tipos de violência para as castigar do seu insucesso.
Esta técnica não é um elemento central do ponto de vista estratégico, mas
tem um propósito claro, essencial à sobrevivência de um grupo extremista ou terrorista: o recrutamento de membros e simpatizantes. O uso desta técnica - materializada no estabelecimento de falsas relações românticas - funciona como uma forma de propaganda, complementar a uma estratégia mais abrangente, sendo acompanhada pela promessa de determinadas condições de vida e por uma narrativa extremista. Independentemente da causa ideológica, o uso do romance tem o propósito de recrutar para diferentes fins - adesão ao grupo, incitar ou perpetrar atos violentos, entre outros - e visa preferencialmente indivíduos vulneráveis ou insatisfeitos com determinadas condições socioeconómicas. O objetivo é estabelecer confiança e exercer poder sobre as vítimas através de sentimentos de afeto e aprovação, convencendo-as que aquele caminho “alternativo” é a única a solução para os seus problemas, e doutrinando-as ideologicamente. Trata-se de uma armadilha psicológica que conquista, seduz e ilude, podendo incluir o
recurso a relações de natureza romântica, sexual ou de “amizade”.
Apesar de não ser uma técnica inovadora nem exclusiva do terrorismo, é um tema relevante para compreender o modo de atuação dos seus grupos e recrutadores. Em um estudo académico de Nina Käsehage, no qual foram entrevistados 175 jovens seguidores da ideologia salafista-jihadista entre 2012 e 2016, a investigadora identificou três tipos de militantes, um dos quais o “apaixonado” ou aquele que se sente seduzido pelo recrutador.
A expansão dos meios tecnológicos, incluindo de apps de conversação, redes sociais e inteligência artificial, tem contribuído para o sucesso desta técnica, permitindo não só o recrutamento, a sua sofisticação e a difusão da propaganda extremista, mas também uma aproximação ao modus operandi das redes criminosas. O amor é, assim, uma arma e uma armadilha eficaz, juntando-se a um rol de outras práticas semelhantes entre terroristas e criminosos, incluindo a exploração de redes migratórias para o mesmo efeito ou o recurso ao tráfico de droga e de armas como meios de financiamento.
Nota: Tema explorado em artigo anteriormente publicado pelo Iscte, aqui
modificado, atualizado e explorado de forma diferenciada.