Não se aprende a morrer

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“Do not go gentle into that good night”

(Dylan Thomas)

Montaigne dizia que a filosofia nos ensinava a morrer. Por mim, estou mais em crer que a invenção de rostos para a morte é antes obra da literatura. Nós vemos morrer Ivan Illich nos seus olhos de desespero, tanto como nos olhares cada vez mais indiferentes daqueles que o rodeiam. Sim, há um momento em que a proximidade de morte torna transparente aquele que vai morrer.

Estas considerações lúgubres nascem-me da leitura de dois bons livros acabados de sair, não de filosofia, mas um de poemas e um outro de contos. Refiro-me ao magistral livro de poemas de Hélder Macedo Corpos da Memória e ao excelente livro de contos de Fernando Pinto do Amaral Contos Suicidas.

Hélder Macedo segue a injunção de Dylan Thomas e recusa-se a entrar resignado nessa noite que a todos nos espera. A sua poesia, que é de uma contenção e de uma delicadeza admiráveis e difíceis de atingir, ao falar da perda de sua mulher, ganha assomos de revolta e de uma raiva profunda (que ao mesmo tempo consegue fazer humor consigo própria) ao afirmar a sua frontal recusa da morte. Recusa que é a de todos nós, imortais no nosso inconsciente, como dizia Freud, e que vamos esquecendo a morte pelos encontros e desencontros das nossas vidas. Hélder Macedo decide, porém, olhá-la de frente, aquela que, como o sol, não se pode olhar.

Dizer destes poemas que são magistrais é dizer pouco. Recordo-me das considerações de Edward Said sobre as obras de arte tardias na vida dos seus autores, considerações inspiradas aliás em textos de Adorno sobre os últimos quartetos de Beethoven: nas obras tardias a maturidade do autor torna-o capaz de ignorar as regras que antes impunha a si próprio e de aventurar-se mais longe ainda na sua arte. Ora Hélder Macedo atinge com este livro um cume difícil de igualar na sua arte poética. E por isso este seu livro vem bater com tanta força nos nossos corações.

Fernando Pinto do Amaral, por seu lado, vem mostrar-nos uma mestria superior na difícil arte do conto. As suas narrativas, escritas a olhar para lugares estranhos entre a vida e a morte, surpreendem-nos a cada passo com os dotes de uma imaginação rica e profunda. E é sempre à volta da morte que estes contos vagueiam e nos deixam inquietos.

Falo hoje da morte e só por isso deixo de lado outras duas leituras minhas nestes dias: os sonetos de Antônio Carlos Cortez, excelente poesia, rigorosa como cristal e apaixonada como chama, e o denso livrinho de António Marques sobre a visão filosófica da Paz, essencialmente a partir de Kant, extremamente adequado aos dias que vivemos.

E não, desta vez não falarei de Trump.

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