Não esquecer Camilo…

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Regresso sempre com redobrada admiração ao percurso controverso e atribulado, mas fascinante, de Camilo Castelo Branco. Passam por estes dias 200 anos sobre o nascimento do extraordinário cultor das nossas língua e literatura, sendo tempo de não o esquecer. Só uma personalidade capaz de incorporar as dimensões contraditórias da vida pôde ser um criador tão fulgurante, capaz de revelar na sociedade em que viveu as mais inesperadas características. Foi um romancista sobre quem alguns julgaram que tinha uma fórmula de sucesso, no entanto, se virmos com atenção, verificamos a genialidade, o conhecimento profundo da História e da complexidade humana, a grande curiosidade, a cultura excecional e a capacidade de entender o mundo social e político (de José do Telhado ao Bispo de Viseu).

Percorrendo as fundamentais Memórias Fotobiográficas (1825-1890) de Camilo Castelo Branco, do meu amigo José Viale Moutinho (Caminho, 2009), fico com a consciência clara sobre quem foi o homem e o intelectual, que primeiro se tornou, entre nós, profissional da escrita. Dele disse Trindade Coelho: “Glória nacional, dir-se-ia que, na febre com que trabalha e produz, é desígnio de Camilo dar um livro a cada português que saiba ler. Cérebro portentoso, conhecedor profundíssimo da língua, génio criador e obreiro incansável, ele tem escrito muitíssimo e escreve como ninguém.”

E um dia o romancista confessou o segredo da sua inesgotável criatividade: “Eu sou um homem que conto a minha vida quando não posso, por ignorância, contar a vida alheia.” E uma vida “atrapalhada”, como a sua, deu sempre abundância de temas.

As Memórias do Cárcere são, no seu drama e vitalidade, um momento crucial para a compreensão do romancista, que é o principal protagonista do seu romance. E aí encontramos o rei D. Pedro V, incólume como figura moral, em visita à Cadeia da Relação do Porto, onde encontra Camilo preso. E antecipa a sentença judicial, que se tornou um julgamento humano. “O rei deu alguns passos no meu quarto e reparou um instante num livro aberto, que era um Plutarco, na Vida dos Varões Ilustres. Observou-me fixamente, e disse-me: - Estimarei que se livre cedo. (…) Saiu Sua Majestade e, ao descer as escadas, proferiu as palavras iniciais deste capítulo: - Isto precisa de ser completamente arrasado.”

Num tempo de pusilanimidade, vem ao espírito a honradez e a sinceridade do homem público. E se Camilo escreveu Amor de Perdição em 15 dias, os mais atormentados da sua vida, nos tempos da cadeia, a verdade é que se lembrava que, desde menino, ouvira contar a triste história do tio paterno, Simão António Botelho, e assim pôde compor uma obra-prima inscrita a letras de ouro nas nossas letras e artes.

Quando lemos A Queda dum Anjo, sob a sombra de Calisto Elói, retrato severo de uma sociedade de transição, entre o rural e o urbano, o fechado e o cosmopolita - o romancista confessa a seu amigo Castilho que “quisera um livro didático ameno (…) que, sem dizer que ensinava, ensinasse”.

Os temas multiplicam-se, parecendo as novelas “querer demonstrar que sucedem casos incríveis”. E como acontece no Retrato de Ricardina, num volte-face , “venceu a verdade, onde, já agora e tão somente, lhe é permitido vencer - nas novelas”.

Mais do que romântico, Camilo foi um retratista único da sociedade que o gerou e em que viveu. Eis por que a sua leitura continua a ser necessária.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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