Nuno Júdice, o poeta por detrás da sua poesia

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A poesia de Nuno Júdice, por mais simples e direta que nos pareça ser, tem sempre, implícito ou insinuado, um sorriso de ironia que torna o mais quotidiano e coloquial dos versos num ambíguo cruzamento de sentidos.

Ao dizer isto, coloco o autor por detrás da sua obra, o que infringe os princípios básicos da crítica literária desde o New Criticism (a terrível “falácia biográfica”!). Valha-me Deus! Mas tento salvar-me com uma pirueta, inventando que não é o autor quem sorri nos bastidores, mas um autor-suposto (o poeta é um ser-suposto, já a Emily Dickinson nos ensinou), e que é o riso de um fantasma, mais discreto e oculto do que os fantasmas que povoavam os primeiros livros do Nuno, é esse riso que transparece nos mais simples dos seus versos.

Mas prefiro contar que quase nunca eu e o Nuno falávamos de poesia. Quando eu citava autores, ele, ou aprovava com um dito breve, ou fazia um esgar com o rosto, que atirava o infeliz autor para o mesmo Inferno que Dante enchia também com os seus inimigos.

O “ser-suposto” do poeta aparecia pouco ou nunca nas nossas conversas. Habituámo-nos um ao outro como viajantes de um mesmo comboio, que simpatizam um com o outro e não precisam de muitas conversas para a prática fiel da sua amizade.

Como eu já disse noutro lugar: “É ao mesmo tempo fácil e difícil explicar por que razão eu e o Nuno não nos afastámos, em todos estes anos (que eu vivi no estrangeiro). O que nos manteve juntos? A Poesia? A Poesia não é senhora que partilhe os seus afetos. A política? Tem sido algo esporádica na nossa vida: só estamos lá quando faz falta. A admiração pelo poeta? Há tantos poetas que admiramos, mas preferimos não encontrar...

A melhor explicação que conheço da amizade é a que deu Montaigne sobre o seu encontro com La Boétie: Parce que c’était lui, parce que c’était moi - Porque era ele e porque era eu.”

Mas também porque a Manuela é a Manuela e a Didas é a Didas. Os casais entendiam-se, através de tropismos que nem necessitavam de ser ditos. E assim muita festa fizemos juntos, muitas viagens empreendemos a quatro e nas nossas estações do ano estavam já inscritos, fixos e imutáveis, os almoços e jantares na Mexilhoeira no verão, com amigos que veraneassem por perto, e a colheita de laranjas em janeiro, de um laranjal que prometo daqui ao Nuno, sem consultar mais ninguém, nunca deixar que apodreça.

Vê-se perfeitamente que divago, aproveitando as liberdades estilísticas da crónica e que, face ao meu próprio desgosto e dor, desisti de brincar aos críticos literários (não tirei o curso certo) e é na pessoa do autor e não na ficção do ser-suposto que concentro o afeto medido que posso exprimir aqui (não necessitando, apesar de tudo, de chegar ao laconismo do Nuno) e tudo o que evoca em mim a sua amizade.

Conhecemo-nos em 1966 (há 58 anos!) e em todos os ciclos da nossa vida e da nossa História nos fomos juntando e conversando. Desde a distribuição de panfletos subversivos na Granfina, passando pela Revolução (que hoje nem parece que faz 50 anos) e depois pelos nossos percursos e incursões pelo mundo lá fora.

Impossível não lembrar aqui Eduardo Prado Coelho que, nesses tempos pré-históricos, conseguia receber os livros de Paris antes de todos nós... Mas, espera, espera Nuno! Ao ires-te embora, vão-se embora contigo a Granfina e os seus discursos, os amigos perdidos e os mundos desejados, vai-se embora contigo um grande pedaço de nós.

Falhei esta crónica. Desculpem, leitores. Deixei-me dominar pelo duro e agudo sentimento da perda e todos os mecanismos de defesa que tinha interposto entre este texto e a emoção (até o New Criticism, senhores, até o New Criticism!) falharam em preservar este texto da comoção e da saudade, esses sentimentos tão burgueses e filisteus!

Desculpa, Nuno, não ter sabido dizer-te adeus!

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