Nunca Mais é Agora

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O  ano passado, no Dia Internacional da Memória do Holocausto, falei sobre a importância de relembrar o Holocausto fazendo ouvir a voz dos sobreviventes. Partilhei, por essa razão, o testemunho da minha própria família.

Tinha uma intenção semelhante para este ano -- é nossa obrigação manter viva a voz dos sobreviventes. Contudo, estes últimos 3 meses provaram que temos de abordar não apenas o resultado do ódio, mas também a sua causa, a antiga fonte que abriu o caminho para o Holocausto: o antissemitismo.

O já falecido Rabino Jonathan Sacks disse: “Há 500 anos, em Espanha e em Portugal, havia antissemitismo e o pretexto era a religião. Há 80 anos, na Alemanha, o pretexto era a raça. Nos nossos dias, o pretexto do antissemitismo é o sionismo.”

É chegado o momento de reconhecer, de uma vez por todas, tratar-se (ainda hoje) do mesmo ódio disfarçado de diferentes roupagens. Na verdade, estes pretextos antissemitas provam não ter nada a ver com o Estado de Israel -- afinal, há muito que se vandalizam sinagogas e se aterrorizam comunidades judaicas locais. Muito antes do Estado de Israel ter sido recriado.

O Ministério dos Assuntos da Diáspora de Israel registou um aumento chocante de 500% nos incidentes antissemitas em todo o mundo durante as primeiras três semanas do conflito que resultou do ataque terrorista de 7 de Outubro.

De acordo com esses dados, a Alemanha, França e o Reino Unido registaram o maior aumento de incidentes violentos, profanações de cemitérios, assédio e ameaças contra as respectivas comunidades judaicas.

Em França, só na segunda semana de outubro, o Ministério do Interior francês registou mais de mil atos antissemitas, que resultaram em centenas de detenções.

Também em outubro, o Community Security Trust (CST) britânico, que visa proteger a comunidade judaica, relatou o maior número de ataques antissemitas alguma vez registado.

Nos EUA observa-se também um aumento de incidentes antissemitas e, surpreendentemente, até os diretores de três universidades da Ivy League tiveram grande dificuldade em dizer que o genocídio de judeus é errado.

Nem sequer precisamos de olhar para tão longe. Nos últimos meses, até aqui em Portugal, vimos assistindo, incrédulos, ao regresso do medo que os judeus sentem de andar na rua com sinais exteriores da sua fé.

Assistimos a manifestações onde há quem exiba cartazes que equiparam Israel e os judeus a lixo, do qual o mundo deve ser “limpo”, para então -- e só então -- se tornar um lugar melhor para viver. Estas manifestações estão pejadas de crianças trazidas pelos seus pais manifestantes. Isto é o que estas crianças aprendem sobre o conflito. Isto é o que aprendem sobre o judaísmo.

Já alguém se perguntou por que é que os judeus não levam os seus filhos às manifestações de solidariedade? Já alguém se perguntou por que razão há segurança nas sinagogas e não nas igrejas ou mesquitas?

Porque há uma grande possibilidade de sermos atacados.

Nas últimas semanas, a Sinagoga do Porto foi vandalizada, o Centro Cultural Judaico de Lisboa foi vandalizado, empresas portuguesas com ligações comerciais a Israel foram vandalizadas, Universidades em vários pontos do país com protocolos com Universidades israelitas foram vandalizadas e ameaçadas e continuamos a receber, na Embaixada, mensagens de medo de estudantes israelitas e judeus em Portugal.

Tudo isto é antissemitismo. Tudo. É verdade que não representa a vasta maioria do público, que provém de extremistas, mas que não haja qualquer dúvida de que é o primeiro e alarmante sinal da decadência moral de uma sociedade.

Como combatê-lo?

Como se de um vício se tratasse, devemos primeiro reconhecer e admitir a sua existência. Se não fizermos esse exercício de honestidade, não podemos combatê-lo devidamente.

Devia ser inconcebível testemunharmos um aumento do antissemitismo por toda a parte, sob várias formas, e não haver uma voz desassombrada -- da esquerda à direita --, na liderança, a condená-lo abertamente, a dirigir-se às sinagogas no momento em que surge e a encontrar-se com as comunidades judaicas, solidarizando-se com elas. Não é apenas no Dia em Memória das Vítimas do Holocausto que as comunidades judaicas precisam de apoio. É durante todo o ano, assim haja um ato de ódio.  

Se há uma manifestação nas ruas deste país, onde participa um membro do Parlamento -- que é também líder de um partido, o BE --, ladeado pelos mesmos cartazes que mencionei anteriormente, os tais onde judeus e judaísmo são sinónimos de lixo, e ninguém diz nada, qual é a mensagem? O que é que está a ser transmitido aos eleitores destes deputados? E às gerações mais novas?

Qualquer manifestação contendo elementos racistas, esteja de que lado estiver, tem de ser peremptoriamente banida. Se há coisa em que o Holocausto serve de exemplo é que as palavras têm um poder insofismável e que o inferno pode muito bem começar por um cartaz antissemita.

O silêncio e a omissão são muito mais poderosos do que qualquer declaração.

Se houver qualquer indício de antissemitismo, não sejam politicamente corretos. Não invoquem “whataboutisms”, não comparem. O antissemitismo não é comparável a nada. É a forma mais antiga e perigosa de racismo. Ignorá-lo é apoiá-lo. A História ensinou-nos isso da pior maneira.

A segunda e inevitável forma de combater o antissemitismo é a educação. Transmitir aos jovens o horror do Holocausto com o poder das palavras e da memória. Não permitir que o horror seja apagado da memória coletiva para que se não repita.

Fico feliz por o Governo Português ter entendido a importância do elemento educativo da Shoá através da sua integração nos currículos escolares; através da cooperação com a Memoshoá, que há tantos anos vem realizando um trabalho absolutamente extraordinário; através da aposta na vida e no exemplo de Aristides de Sousa Mendes; através da sua associação com a IHRA; através da nomeação de um representante para combater o antissemitismo. Ainda há muito a fazer, claro, mas as gerações vindouras têm de ser informadas e formadas sobre o tema.

Em terceiro lugar, a lei. Não é aceitável que a liberdade de expressão não tenha limites. Não é aceitável ver e ouvir as expressões mais ultrajantes de antissemitismo e que haja políticos que nelas participem ou, em não o fazendo, não as condenem.

Aqueles que apelam, impunemente, à destruição de Israel são protegidos pela mesma democracia cujo vigor e legitimidade apodrecem cada vez que o fazem.

A expressão do antissemitismo deve andar de mãos dadas com a responsabilidade, principalmente nos dias de hoje, quando, como reconhece o Coordenador da UE para o Combate ao Antissemitismo e a Promoção da Vida Judaica, “muito ódio é transmitido e incontestado, há muito tempo, nas redes sociais”. É particularmente importante prestar atenção a este espaço tão recente e pouco legislado.

É urgente tomar medidas exemplares, afastar-nos das boas intenções expressas apenas em papel num momento em que a realidade nos ultrapassa.

Mas não desesperemos. Embora o antissemitismo nos acompanhe há mais de 2.000 anos, isso não significa que esta seja uma batalha que vamos perder.

Acredito que a Humanidade tem formas de aprender com a nossa lição. Acredito na boa consciência dos países que compreendem o problema e estão dispostos e prontos para lidar com ele. Acredito em almas como Aristides de Sousa Mendes e, acima de tudo, acredito no Estado de Israel.

A mensagem que quero aqui deixar deriva de tudo isto: a História confirma, repetidamente, a importância da existência de um Estado judeu forte, independente, democrático e comprometido com a verdade, mesmo em tempos difíceis e sombrios.

Em 1940, quando os meus avós experienciavam tempos de trevas, não tinham o que todos os judeus têm hoje: uma pátria ancestral para onde podem regressar e ficar em segurança. Onde quer que se encontrem. Sempre.

A outra grande, enorme diferença é que hoje não temos vergonha de estar aqui e falar abertamente sobre tudo isto, assumindo um claro compromisso para que o Holocausto não volte a acontecer.

Nunca mais.


Embaixador de Israel

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