Nova sonata de outono
Dos rios se diz que são violentos;
mas ninguém diz violentas
as margens que os comprimem
Bertolt Brecht
Quando vivi em Angola, faziam-me falta as mudanças de estações, os outonos e as primaveras que nos preparam para a eclosão do verão e para o cerrar do inverno. Hoje tudo se mistura, os dias de verão com as noites de outono, o inverno que ocorre sem o esperarmos, as vindimas que vão entrando para dentro do verão.
Mas sabem-nos a outono estes dias. Um lamentável incidente policial, que acarretou uma morte que nada justificava, levou à revolta das populações periféricas vítimas de racismo, que temos vindo persistentemente a ignorar.
Não vale a pena lembrar as pessoas de cor branca que foram também, nos últimos anos, vítimas de precipitações policiais que resultaram em mortes. A diferença aqui (e o maior perigo) é que as comunidades africanas de segunda geração (portugueses negros) se sentem permanentemente confrontadas pela pressão policial e que os agentes policiais se sentem ameaçados por essas comunidades.
Há que recordar a velha e fundamental noção de Max Weber sobre o monopólio pelo Estado da violência legítima. Esse monopólio da legitimidade dos meios violentos de atuação impõe ao Estado e aos seus agentes especial responsabilidade no uso medido e adequado de tais meios e aconselha o máximo de diálogo entre os agentes de autoridade e essas comunidades. O contrário levaria a que a autoridade legítima do Estado fosse encarada por esses cidadãos como uma ocupação violenta e discricionária do seu território e conduziria a um processo de criação de guetos, que só poderia provocar mais violência.
A situação agrava-se quando temos um partido extremista a apelar ao massacre puro e simples dessas comunidades, em declarações que constituem claras manifestações de ódio e apelos à violência.
O apelo à Revolução, feito agora alto e bom som por estes extremistas, mostra como a Revolução mudou de campo, hoje que os extremos da esquerda se limitam a reclamar uma maior contribuição fiscal por parte dos ricos, o que a alguns incomoda mais do que o assassinato de portugueses de cor.
É outono e as sombras rodeiam a “pequena luz bruxuleante” (Sena) da democracia que implantámos em abril. Desencadeiam-se violentas guerras no mundo, o confronto nuclear parece hoje possível e os partidos extremistas de direita conquistam dia a dia terreno dentro das nossas democracias, a começar pelas mais antigas: Estados Unidos da América, República Francesa e Reino Unido. As folhas mortas recolhem-se com dificuldade e o céu parece prometer-nos grandes tempestades.
Mas “não há machado que corte / a raiz ao pensamento”, como dizia Carlos de Oliveira. Teremos força para defender a luz brilhante da nossa democracia, se nunca nos resignarmos ao estado das coisas, se nos mantivermos sempre atentos e impiedosos com as mentiras e os venenos que nos cercam de todo o lado. Se reaprendermos a lutar.