Nossa Senhora dos Americanos

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A propósito da novo e polémico Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, que prevê o aumento do número de solos rústicos destinados à construção de habitação (Programa Construir Portugal), entretive-me a ver a carta nacional de solos rústicos. Achei curioso que uma das áreas do país que será mais afectada por estas alterações legislativas seja a faixa costeira que vai da Península de Troia até Sines, sobretudo tendo em consideração que esta é a zona que mais tem sido promovida nos meios de comunicação norte-americanos como correspondendo ao ideal de “Califórnia Europeia”, território idílico onde a cantora Madonna e os seus filhos adoptivos se fazem fotografar cavalgando nas praias de Melides e onde o actor George Clooney constrói moradias de luxo na Comporta. Não me admiraria que, na sequência da eleição de Donald Trump para a presidência do governo federal e, simultaneamente, da destruição de centenas de moradias apalacetadas na faixa costeira de Palisades e Malibu, muitos norte-americanos abastados sintam acrescida tentação de emigrar para Portugal. Involuntariamente ou talvez não, o executivo português estará certamente a fazer um grande favor a quem queira trocar a Costa Oeste de um continente pela costa oeste de outro mais a poente, e assentar arraiais no distrito de Grândola.

Não seria esta a primeira vez, nem certamente a última, que o efeito conjugado de factores políticos e desastres naturais faria arribar às costas portuguesas gentes muitas e variadas. Lembremos o que aconteceu, cerca de século e meio antes da assinatura do célebre Tratado Anglo-Português de 1373, que selou a “mais antiga aliança diplomática do mundo” – ou, como diria um Guerra Junqueiro – o acto primeiro da continuada interferência britânica nos destinos da costa oeste da Península Ibérica (caso aceitemos tomar o acordo entre Afonso Henriques e os cruzados ingleses para a tomada de Lisboa como proémio). A história tem foros de lenda, e foi fixada por escrito num pergaminho datado de 1258, transcrito pela primeira vez por Frei António da Purificação, na Crónica Antiquíssima da Província de Portugal da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, em 1638. O seu autor declara ter fundado uma igreja, e posteriormente uma congregação conventual no lugar de “Rábida”. Nota o Padre Manuel Frango de Sousa, no seu estudo histórico-crítico “A Lenda de Santa Maria da Arrábida”, de 1989, que há alguma indeterminação sobre a localização do lugar já que, se o Frei António da Purificação o identifica como sendo a Serra da Arrábida, já antes, em 1587, o Padre Francisco Gonzaga, no capítulo sobre a “província da Arrábida” do seu Origine Seraphicae Religionis Franciscanae, indica que o lugar é sobranceiro à embocadura do Tejo, e não do Sado. Seria erro do cronista ou talvez obscuração propositada, sinuoso

testemunho da histórica disputa entre frades agostinhos e franciscanos pela posse e administração do Convento de Nossa Senhora da Arrábida, em terras ducais de Palmela.

Certo é que o auto-intitulado fundador do convento original assinava com o nome de Haildebran (ou Hildebrando), que o quinhentista Padre Gonzaga relata ter sido um mercador inglês o qual, estando a sua embarcação em risco de naufrágio durante uma tormenta nocturna nas imediações o “Monte Arábico”, se apercebe que a imagem da Virgem Maria, que guardava no convés, tinha desaparecido; é miraculosamente guiado e salvo por uma luz que emanava na encosta da serra; tendo conseguido fundear em segurança, sobe com os seus companheiros o monte, onde descobre “em cima de um certo rochedo” a anteriormente desaparecida imagem da Virgem. É este episódio que o leva a abandonar a vida de comerciante marítimo e a erigir a ermida que veio posteriormente dar lugar ao convento de Nossa Senhora da Arrábida.

Em tom e estilo decerto inspirados por Alexandre Herculano, o historiador azeitonense Joaquim Rasteiro escreve, na sua introdução à “Lenda da Arrábida”, em 1896: As guerras estranhas e as perturbações intestinas que devastaram a Inglaterra em fins do séc. XII e no princípio do seguinte sob o reinado de João Sem-Terra (...) fizeram com que alguns comerciantes deixassem o país pelo estrangeiro; d’estes um tal Hildebrando, de que apenas se conhece o nome de baptismo, buscou Portugal para vir estabelecer-se em Lisboa.

Talvez George Clooney tenha arribado à Comporta fugido das perturbações intestinas “que devastaram a América em inícios do séc. XXI”. Talvez o seu iate tivesse estado em risco de naufrágio durante uma tormenta nocturna ao largo de Tróia. Talvez tenha confundido Madonna cavalgando no areal com uma imagem salvífica da Virgem. E talvez um dia abandone a carreira artística e se lance na construção de uma modesta ermida em adobe mexicano, entre as luxuosas villas erigidas em estacas nos alagadiços terrenos dos antigos arrozais da Comporta. E talvez, daqui a alguns séculos, os descendentes dos expatriados franceses do Bairro do Troino, em Setúbal, devotos do círio marítimo de Nossa Senhora dos Americanos, atravessem em procissão a futura ponte sobre o Sado, que ligará, por Tróia, Setúbal ao complexo metropolitano de Melides.

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