Nos tribunais reina a crispação
Há trinta anos, quando iniciei a minha atividade como advogado, vivia-se um ambiente de cooperação, cordialidade e urbanidade entre magistrados, procuradores e advogados. Partia-se de uma premissa simples, mas fundamental. Todos são profissionais do mesmo ofício, cada qual com o seu papel, mas unidos na nobre tarefa de garantir um direito fundamental consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa: o acesso dos cidadãos ao direito e à justiça. Os anos passaram e a realidade dentro das quatro paredes dos Tribunais mudou. Mas mudou para pior, em que o respeito mútuo e a colaboração parecem ter-se esvaído, dando lugar à conflituosidade e a uma desconfiança latente. Ainda que, no passado, já se verificassem algumas exceções no foro penal, onde por vezes alguns magistrados mais arreigados, se mostravam particularmente pouco empenhados no tratamento dispensado aos advogados – fazendo-lhes incidir quase que uma presunção de culpabilidade que recaía, indevidamente, sobre os arguidos –, hoje, tal tratamento tende à preocupante generalização a outras jurisdições. Na realidade, pululam hodiernamente pela sua infeliz vulgaridade, os casos em que advogados são advertidos pelos juízes de que a conduta dos seus constituintes (leia-se, a sua própria conduta) poderá ser avaliada à luz do instituto da litigância de má-fé. Tal advertência surge, em diversas situações, mesmo que a conduta processual em causa seja plenamente admissível e prevista nos diversos códigos de processo. Isto, ainda que, a mera divergência entre autor e réu seja precisamente a razão de ser para a existência de litígios e dos Tribunais que têm como missão solucioná-los. A missão do judiciário não será, precisamente, decidir dissensos entre partes? A pergunta é obviamente retórica. Este ambiente de animosidade, que por vezes roça a intimidação velada com a ameaça de participação à Ordem dos Advogados, contraria frontalmente o que a justiça deve ser e a quem deve servir: o cidadão. Com efeito, não podemos olvidar que os tribunais existem para tutelar os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e que a missão dos juízes é aplicar as leis com imparcialidade, independência e respeito pela dignidade de todos os intervenientes processuais. Se algumas das propostas de alteração ao Processo Penal sugeridas por um Grupo de Trabalho de magistrados, atualmente em discussão, forem aprovadas, arriscamo-nos a degradar ainda mais este panorama, fomentando a crispação em vez da cooperação. A função jurisdicional não pode, nem deve, ser exercida sob o signo da desconfiança constante, mas sim segundo critérios de legalidade, bom senso e confiança. Fazer justiça não se esgota na decisão final. Implica de permeio um tratamento digno e respeitoso de todas as partes.
Não convém esquecer que os juízes servem a comunidade. A magistratura não constitui um poder autocrático, mas antes um órgão de soberania essencial do Estado de Direito democrático, a quem os cidadãos têm o direito de exigir uma justiça imparcial e humanizada. Aos advogados, cumpre-lhes adotar uma postura de correção, transparência e boa-fé processual, cientes de que desempenham um papel imprescindível na garantia de defesa dos interesses dos seus representados. É tempo de regressarmos ao caminho certo, de se honrarem as prerrogativas de cada profissão e de se respeitarem os utentes da justiça, pois só assim a justiça cumpre a sua vocação essencial de serviço público.
Politólogo e escritor
Oautor escreve de acordo com a antiga ortografia