Nós e o Japão

"...gente de mui boa vontade,
e mui conversavel. ᶓ
mui desejosa de saber...he a melhor que
ate agora esta descoberta..."

Carta de Francisco Xavier enviada de Kagoshima aos padres de Goa em Agosto de 1549

Portugal e o Japão comemoram este ano os 480 anos do improgramado e acidental encontro em 1543 de que foi testemunha a ilha de Tanegashima. O pioneirismo deste encontro, que tem alimentado ao longo dos séculos o imaginário colectivo português , foi reclamado por Mendes Pinto, retratado por Hokusai numa famosa gravura de 1817 e perpetuado por estes singulares monumentos artísticos que são os biombos namban, vocábulo polissémico que convoca uma visão exótica e um tanto ou quanto disfemística da actividade dos portugueses nestas ilhas.

Historicamente, Portugal "monopolizou" a cultura no Japão durante um século (1549-1639), centúria intitulada de "Século Cristão", expressão eurocêntrica, que fez fortuna em textos ocidentais mas ignorada por historiadores nipónicos, que nos falam, ao contrário, da época Azuchi-Momoyama, um período de grande vitalidade artística e cultural, durante o qual a cultura japonesa reforçou a sua identidade. Porém, o "Século Cristão" teve, sem dúvida, uma enorme capilaridade exclusivamente no sul do Japão e de uma forma residual na área de Quioto. Não obstante, a diplomacia missionária deixou duas marcas que ainda hoje perduram: intensa actividade proselitista e editorial, e os biombos namban.

O fim da presença portuguesa no Japão em 1639, que teve como sucedâneos ingleses e holandeses, marca o início de um longo "período de seclusão", baptizado de Sakoku, e que se estende até 1860.

Esta política de seclusão dos Tokugawas não foi um xenofobismo impensado e acidental. Os Tokugawas viam o Cristianismo como um elemento subversivo, uma ameaça à cultura japonesa e nesta perspectiva o auto -isolamento representou uma catarse purificadora e redentora da sociedade japonesa. Por outras palavras, o Japão, ao adoptar a civilização ocidental despojada do Cristianismo, laicizou a cultura "ocidental"

De entre os biombos que reflectem esta secularização, merece uma referência muito especial o "Biombo das quatro Cidades": Lisboa, Sevilha, Roma e Constantinopla, biombo que teria sido pintado com base na descrição da visão da Europa quinhentista dos jovens legados de Kyushu que integravam a "Missione Legatorum" (1582-1587) à Europa.

O colapso do centralismo político dos Tokugawas, devido à insustentabilidade da arquitectura politico-social em que assentava a força do shogunato, facilitou os famosos "navios negros" do Comodoro Perry a abrir as portas do arquipélago nipónico que foi obrigado a franquear portos à navegação e comércio dos estrangeiros.

A assinatura do "Tratado de Paz, Amisade e Commercio" de 3 de Agosto de 1860, seguido do "Tratado de Comércio e Navegação de 1897", marca o regresso de Portugal ao Japão após um hiato de cerca de trezentos anos.

Porém, após a assinatura do Tratado de Harris de 1858 e da "Missão de Iwakura" aos Estados Unidos, diplomatas ingleses secundados pelos franceses propuseram ao Governo de Bakufu o envio de uma Missão Diplomática à Europa, ou seja, para Inglaterra e França. Esta Missão de 1862, que integrava trinta e cinco membros e um intérprete - Fukuzawa Yukichi - que viria a ser o ideólogo da Restauração Meiji, além de Londres e Paris, acabou por visitar, a conselho do holandês von Siebold, outras capitais europeias entre as quais Lisboa, onde permaneceu durante 10 dias. O objectivo da Missão era estudar as condições políticas, económicas, sociais e militares nesses países.

Se Fukuzawa Yukichi foi o precursor e pioneiro deste reencontro luso-nipónico dos tempos modernos, não podemos esquecer outras figuras nipónicas que contribuíram directa ou indirectamente para densificar as nossas relações. Destaca-se em primeiro lugar o nome do mestre Kiyoshi Kobayshi, embaixador do judo e das artes marciais em Portugal, selecionador e treinador da selecção nacional , liderou diversas representações em campeonatos da Europa, do Mundo bem como nos Jogos Olímpicos; Hirosuke Watanuki, pintor que incorporou à sua fina sensibilidade artística nipónica as artes portuguesas. Watanuki considerava o Museu Machado de Castro a sua "segunda casa" e o director do museu, Luís Reis Santos, o seu "Pai"; Minoru Niizuma, consagrado escultor japonês naturalizado americano, que viveu durante longo tempo em Sintra, contribuiu, com a genialidade da sua obra, para o intercâmbio entre Portugal e o Japão. As suas obras, trabalhadas com matéria-prima nacional - mármore branco, granito negro e basalto açoriano - estabelecem, segundo Manuel Costa Cabral, pontes e referências insubstituíveis para o desenvolvimento da escultura portuguesa em pedra; Kazuo Dan, escritor boémio, poeta e jornalista que, na década de setenta, tendo vivido em Torres Vedras, mais precisamente em Santa Cruz, popularizou no Japão esta vila piscatória, local de peregrinação de turistas japoneses. Torres Vedras homenageou-o, atribuindo a uma das suas artérias o topónimo de Rua Prof. Kazuo Dan; e, finalmente, Takashi Yoshitake, mestre e apóstolo da gastronomia japonesa, que deixou discípulos e convertidos em Portugal. Miguel Esteves Cardoso, o "amigo português" de Yoshitake, fala-nos da epifania gastronómica, pois foi este mestre que lhe "fez ver o peixe como nunca o tinha visto: não só cru como bem cortado". Em 1991, quando o "sashimi" era desconhecido em Portugal, Yoshitake introduziu com a cozinha de adequação um processo de conversão gastronómica.

Miguel Esteves Cardoso recuperou há tempos uma expressão de Mário Cesariny que dizia que "o atraso era a melhor coisa que Portugal tinha". Metaforicamente, os japoneses não discordam de Cesariny. Para eles, o enigma português está no seu brilhante passado e confessam que encontram em Portugal o seu "paraíso perdido", o seu "Santo Graal", o seu "país da saudade".

*Professor universitário

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