Nós e a Rússia: máxima prudência e muita diplomacia

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Andam por aí uns intelectuais com a bússola avariada. Mostraram novamente essa perda dos pontos de referência na maneira como reagiram às críticas feitas a Alexander Lukashenko, a relíquia pós-soviética que controla os destinos da Bielorrússsia desde 1994. Um personagem que preenche todos os requisitos que caracterizam um ditador. Não terá a envergadura de Vladimir Putin ou Xi Jinping, nem a loucura de Kim Jong-un, ou uma visão estratégica que ultrapasse a simples obsessão com a sua perpetuação no poder. É um pequenino tirano que, à sua dimensão, dá cabo das liberdades e estraga a vida dos seus concidadãos. Esta evidência escapa a alguns. Com o olhar fixado no passado, armam-se em progressistas e veem ali um sobrevivente heroico da era comunista, um pretenso resistente aos desígnios imperialistas do Ocidente. E engolem todas as falsidades que essa variante de Salazar, numa versão com bigode e brutamontes, inventa para justificar os seus atos. Em particular, a ação criminosa contra o voo comercial da Ryanair, e as mentiras construídas à volta de Roman Protasevich. Ignoram, ao mesmo tempo, tudo o que os dirigentes europeus têm dito sobre o assunto.

O mesmo tem acontecido com a propaganda vinda do Kremlin. Para alguns dos nossos desnorteados, Putin tem sempre razão, quando ataca a nossa parte do mundo. A explicação é a mesma, embora em dose reforçada, que o Kremlin tem um sentido mais simbólico e toca mais do que Minsk na alma dos nostálgicos da União Soviética.

A verdade é outra, no entanto. Putin é uma ameaça. Tal como outros déspotas, a sua estratégia de poder é a de criar um inimigo externo, de modo a permitir-lhe aparecer, aos olhos dos seus, como o defensor da pátria, dos seus valores tradicionais e da sua projeção nacionalista enquanto grande potência. Nesse plano, tudo o que desponte como oposição interna, e possa pôr em causa o futuro de Putin, é acusado de estar ao serviço das potências estrangeiras e perseguido com toda a ferocidade.

O alvo externo por excelência é a NATO. E a retórica de Moscovo, que alguns por aqui fielmente ecoam, atribui à Aliança Atlântica o desígnio de querer acampar ao longo das fronteiras russas. É a alegada expansão para leste da NATO. Há quatro Estados membros que partilham linhas de fronteira com a Rússia: a Polónia e a Lituânia, que são vizinhas de Kaliningrado, um enclave russo altamente militarizado, e ainda a Letónia e a Estónia. Esses países aderiram à NATO por vontade própria e por reunirem as condições exigidas pela organização: um sistema político democrático, baseado numa economia de mercado e no respeito pelos direitos das pessoas; e a existência de uma estrutura de defesa eficaz e devidamente enquadrada por um poder político legítimo. Trata-se, essencialmente, de democracia e de soberania. É essa soberania - a possibilidade de cada país decidir livremente sobre as suas alianças externas - que Putin não quer aceitar que seja praticada pela Geórgia e, sobretudo, pela Ucrânia. Como não tem esse direito, utiliza, em alternativa, a intimidação, a artimanha e, quando necessário, a força.

Quem vive num labirinto ideológico ultrapassado não entende essas coisas. Não presta qualquer atenção às vozes que vêm do campo europeu, apesar de estas terem a legitimidade democrática que falta aos ditadores. Também não quer saber que o nosso lado tem procurado reavivar sem sucesso o Conselho NATO-Rússia, um órgão consultivo essencial para o desanuviamento. A última reunião desse conselho aconteceu em julho de 2019. Mais ainda, a Rússia foi convidada a enviar observadores militares ao exercício aliado SteadFast Defender 2021, que está a decorrer através da Europa e com um foco especial no mar Negro. Não respondeu ao convite.

A conjuntura atual é preocupante.
A tensão entre os dois lados da Europa está como nunca esteve nos últimos 30 anos. Num contexto assim, a cimeira prevista para 16 de junho, em Genebra, entre os presidentes norte-americano e russo, vai ser muito difícil. É urgente desanuviar a perigosa situação existente, pelo que esse encontro exigirá diplomacia e prudência máximas.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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