No mundo dos jogos virtuais, o ISIS é rei e a Rússia, rainha…

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A vida de Junaid Hussain, antigo hacker jihadista, é de tal forma excêntrica que podia ser ficção. Não é. Entre os 11 e os 21 anos, assumiu diferentes identidades, passando de um jogador online para hacker (que divulgou o livro de endereços pessoais de Tony Blair e bloqueou números telefónicos do MI6) até se tornar um terrorista ao serviço do Daesh. Nome de guerra? Abu Hussain al-Britani. Violento, manipulador, recrutador. Certo dia, publicou na rede X: “You can sit at home and play Call of Duty or you can come and respond to the real Call of Duty…the choice is yours”. Foi morto na Síria em 2015 em um ataque realizado pelas forças militares norte-americanas.

O envolvimento de jovens em enredos terroristas tem sido um tema recorrente nas operações de contraterrorismo. Em 2024, quase dois terços das detenções europeias relacionadas com o grupo terrorista Estado Islâmico envolveram adolescentes. Nesse ano, no Reino Unido, foram detidos 71 menores com menos de 21 anos por suspeitas de terrorismo, um número recorde desde 2017. Na Alemanha, a 05 de setembro de 2024, um adolescente de 18 anos tentou perpetrar um ataque terrorista junto ao consulado israelita em Munique. Foi morto pela polícia no próprio dia. Segundo a imprensa alemã, o jovem pesquisou “armas de fogo” 116 vezes na internet, tentou comprar uma caçadeira e um revólver, e “treinou” execuções em um jogo de computador.

O aliciamento de jovens para o terrorismo está relacionado, entre outros fatores, com a exploração da internet e redes sociais para fins maliciosos. Neste âmbito, as plataformas de jogo online têm surgido como instrumentos cada vez mais atrativos para redes criminosas, grupos extremistas e terroristas. No entanto, apesar dos recentes casos, a exploração da indústria dos jogos virtuais tem uma longa história, tendo origem na década de 1980: um fenómeno que acompanhou a criação da internet nos anos 90 e passou por períodos de crescimento e estabilização, assistindo-se atualmente - desde 2020 - a um renovado interesse por parte de diferentes grupos ideológicos com destaque para a extrema-direita e o jihadismo.

O mundo do “gaming” é complexo, englobando áreas tão diversas como as componentes de software e hardware, as plataformas de jogos (ex. Steam, Discord, Twitch) e os seus membros, até aos estúdios de produção. Os grupos terroristas exploram todos estes aspetos, aproveitando as vulnerabilidades de uma indústria que gera milhões - nos EUA, por exemplo, foi o setor mais rentável no mundo do entretenimento em 2022 - para satisfazer múltiplos propósitos, incluindo recrutamento, radicalização, mobilização, difusão de propaganda ou financiamento. É um jogo “limpo”, em anonimato, que utiliza uma linguagem “jovial” e “emojis”, permitindo o acesso a milhares de identidades.

Os métodos de exploração do gaming são variados e estão em constante evolução. Um deles consiste em explorar fantasias, adaptando jogos populares tais como Call of Duty ou Tomb Raider, no intuito de preparar indivíduos para matar, difundir mensagens profundamente violentas, extremistas e fundamentalistas, bem como narrativas de ódio e noções distorcidas de poder e disciplina. São inúmeros os jogos existentes com contéudos perturbadores e temas semelhantes entre a extrema-direita e o jihadismo. Em “KZ Manager” (1990), o cenário de jogo é o campo de concentração de Treblinka e o objetivo central é substituir Judeus por Turcos. Em “Angry Goy” (2018), jogo jihadista,

o objetivo é matar civis, judeus, árabes, negros, o Presidente dos EUA, entre outros. Em 2022, 15% dos jovens jogadores norte-americanos entre os 10 e os 17 anos relataram ter contacto com narrativas supremacistas, um aumento significativo em comparação a 2021 (8%). Sendo um fenómeno global, “alguns jovens residentes em Portugal” também já foram apanhados em plataformas de gaming revelando “fascínio pela narrativa jihadista”, nas quais procuraram estabelecer contactos com indivíduos de “perfil psicológico e interesses semelhantes” (alertas referenciados nos RASI de 2022 e 2024).

Os conflitos internacionais também são temas do gaming e atores estatais como o Irão ou a Rússia já procuraram explorar este espaço. Por exemplo, em 2023, Bradford Smith, Presidente da Microsoft, empresa detentora do “Minecraft”, revelou que a Rússia tem procurado infiltrar-se nas comunidades de gaming, visando especialmente a rede Discord, para difundir desinformação sobre a Ucrânia bem como promover uma imagem “ameaçadora” e “atrativa” da Wagner e das forças militares russas.

Apesar destas atividades, as plataformas de jogo também têm sido aproveitadas em prol das comunidades, nomeadamente para promover o recrutamento de militares e combater a cibercriminalidade. Nos anos 2000, os EUA tornaram-se no primeiro país a incentivar o recrutamento para as Forças Armadas através do jogo “America’s Army” (2002), um produto desenvolvido pelo Exército que teve um sucesso inesperado, permitindo reverter a imagem pejorativa dos militares norte-americanos na década de 1990. Em 2018, criaram uma equipa de desportos eletrónicos (US Army eSports Team) e, em 2020, a Força Aérea criou um jogo com vista ao reforço da camaradagem: já conta com mais de 28.000 utilizadores. Em 2024, o FBI iniciou um programa de cooperação com as empresas de gaming para prevenir o extremismo violento.

A União Europeia não está fora de jogo. Em 2018, foi desenvolvido o “Bad News Game”, um jogo virtual criado na Holanda que visa combater a desinformação online, partindo do princípio da “inoculação psicológica”: o jogador assume o papel de um produtor de notícias falsas e é exposto ao impacto da sua difusão, ganhando “anticorpos” contra aquela ameaça. Em 2020, vários países europeus, incluindo Portugal, criaram o RAYUELA, um jogo inspirado em histórias reais que visa combater o cibercrime de forma lúdica, educando os jovens para o uso responsável da internet: o jogador é convidado a explorar seis “ciberaventuras” que alertam para práticas como o ciberbullying, o discurso de ódio, o tráfico sexual de menores ou a desinformação, entre outros.

Tal como em outras tecnologias, as plataformas de jogo estão sujeitas a uma exploração ambígua, satisfazendo objetivos criminosos ou legítimos. Alertar para os perigos dos jogos virtuais é importante, mas também não podemos esquecer o seu lado salutar, pois têm efeitos comprovados na saúde mental, comunicação, diversão e capacidade de raciocínio. Reforçar a cooperação nacional e internacional, colaborando com entidades como o EU Internet Forum ou o Global Internet Forum to Counter Terrorism (GIFCT), continua a ser a principal arma contra os malfeitores. Estar do lado certo da história depende de ti. Ser super-herói na vida real é só mais um bónus. Soldado, vamos jogar? :)

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