No Iraque discute-se identidade nacional… em Portugal nem por isso
Escrevo do Curdistão, no Iraque. Tenho vindo a este país no âmbito de um projeto destinado a pensar a revisão da sua Constituição. Nesta missão, iremos falar de identidade nacional e diversidade cultural, e a escolha do local é simbólica.
A Constituição Iraquiana abre com a referência aos “Povos da Mesopotâmia”, mas, até agora, não conseguiu uni-los sob o mesmo sentimento de pertença. Afirma como tarefa acabar com o sectarismo e racismo, reconhecendo a diversidade de todos os que compõem o país: de xiitas, sunitas, curdos a cristãos, de turcomanos, caldeus, assírios, a árabes. A História deste local passou por tudo: de um passado fervilhante de diálogo rico, a lutas e massacres. Um novo capítulo quer forjar uma identidade nacional que, ao mesmo tempo, assente no reconhecimento cultural de todos estes grupos.
O percurso deste desafio é, pois, muito distinto do português. A nossa identidade nacional é talvez das mais antigas da Europa. Só que a realidade está a mudar com os fluxos migratórios, e começamos a confrontar-nos com diferenças culturais e religiosas desafiantes.
Ora, o que se discute hoje no Iraque (mesmo que pareça inalcançável) - como manter a diversidade e ter uma identidade nacional -, é entre nós pura e simplesmente evitado. Já se tem dito que o problema foi a apropriação do tema pelos nacionalismos, tendo levado a que os outros setores políticos não queiram nada com ele.
Os imigrantes, de quem tanto precisamos, e que poderão vir a ser portugueses, trazem inúmeras coisas boas, mas também desafios complexos: dos culturais ou identitários nada se diz. Finge-se que não existem; falar nisso é xenofobia. Ficamos pelo apelo à tolerância e ao diálogo intercultural, esperando que os portugueses e estrangeiros percebam isso espontaneamente. Chegam culturas novas, têm de se aceitar sem questionar, quem tiver dúvidas ou receios é racista, fascista ou provinciano e arcaico.
Ora, a partilha da cidadania com novas culturas impõe que se fale sobre esta questão, para que a paz social continue a longo termo. É a identidade nacional (ainda) um valor que queremos manter? E o que é isso? Devemos preservar os seus traços essenciais face a uma população mutável e com crenças, costumes e histórias tão diversas? E como fazê-lo, sem se cair em políticas racistas ou discriminatórias?
Acredito que o chamado sentimento de identidade nacional tem um valor em si mesmo, e há um núcleo duro de princípios que não deve ficar disponível em função de mutações migratórias. Respeitar a diversidade não tem de significar abandonar a nossa identidade, naquilo que mais tem de precioso.
Aqui neste Iraque procura-se criar uma identidade nacional comum (tarefa que parece hercúlea!), porque se acredita ser fundamental para a Paz, estabilidade política e prosperidade. Em Portugal não seria necessário forjar nada de novo. Mas devíamos refletir sobre os novos desafios populacionais, e sobre a “cola” que nos une, nos mantém, e nos faz portugueses. Não é por acaso que o Iraque contemporâneo o julgou necessário.
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Investigadora do Lisbon Public Law