No Bolsonaristão fala-se bolsonarês

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Não, não, o presidente referia-se, claro, ao setor público", disse, aflito, o ministro da Economia Paulo Guedes, horas depois de Jair Bolsonaro, o seu chefe, declarar, em alto e bom som para o mercado de capitais, a bolsa de valores e os investidores nacionais e estrangeiros ouvirem, que "o Brasil está falido".

O que Guedes fez, nos primeiros dias de 2021, já outros membros do governo haviam feito repetidas vezes ao longo dos inenarráveis 2019 e 2020 brasileiros: uma tradução, às pressas, de bolsonarês para português.

"O que ele procurou afirmar é que nós temos uma primeira onda de preocupação, que é a saúde, e temos uma segunda onda, que é a questão económica, pode ser que ele se tenha expressado de uma forma, digamos assim, que não foi a melhor", traduziu no fim de março do ano passado o vice-presidente Hamilton Mourão, no dia seguinte a Bolsonaro ir à televisão chamar a pandemia de "gripezinha" e os receios da população de "histeria".

Há outros, mas o general na reserva é, hoje por hoje, a maior referência na arte de traduzir discursos de bolsonarês para português.

Duas semanas antes da "gripezinha", já mostrara as suas credenciais como intérprete: num evento com fuzileiros, Bolsonaro afirmou algo entendível por qualquer falante médio de português como uma ameaça de golpe militar - "a democracia e a liberdade só existem enquanto as suas respetivas Forças Armadas o quiserem"; Mourão foi então obrigado a traduzir para "o que ele quis dizer é que, quando as Forças Armadas são comprometidas com esses valores, o país se sustenta. Olhe a Venezuela, lá as Forças Armadas não estão comprometidas".

Outro general do governo, o entretanto demitido Rêgo Barros, teve de explicar que Bolsonaro "tem apreço pelo Carnaval", horas depois de Bolsonaro revelar não ter apreço pelo Carnaval, ao atacar imagens de festejos nas redes sociais.

Também o célebre "vou interferir e ponto final", dito por Bolsonaro num Conselho de Ministros que levou à demissão do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, por ter entendido, como toda a gente que ouviu a gravação, que a dita interferência seria no comando da polícia do Rio de Janeiro para blindar os seus familiares suspeitos de corrupção, foi objeto de tradução. Um outro fardado, o ministro general Luiz Eduardo Ramos, afirmou em depoimento oficial à justiça que Bolsonaro quis dizer que interferiria "nos ministérios, não na polícia".

Noutra ocasião, Bolsonaro disse que as medidas de combate ao coronavírus já estão a provocar desabastecimento de alimentos; a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, a intérprete de serviço na ocasião, traduziu para "não há desabastecimento de alimentos", ou seja, exatamente o contrário do que havia dito o presidente, sinal das diferenças profundas entre a língua de Camões e o idioma oficial do capitão reformado.

Já havia sido aqui notada a diferença entre dois países que habitam o mesmo espaço geográfico, o doce, amável, criativo, diverso, musical e ecológico Brasil, amado mundo afora, e o atrasado, preconceituoso, intolerante, conspirativo, armado e estúpido Bolsonaristão, ridicularizado mundo afora. O que não se sabia é que um e outro falavam línguas diferentes.

Mas há semelhanças: depois de dizer que "o Brasil está falido", o presidente acrescentou "eu não consigo fazer nada...", uma confissão de derrota e de incompetência tanto em bolsonarês como em português.

Correspondente em São Paulo

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