No Bolsonaristão fala-se bolsonarês
Não, não, o presidente referia-se, claro, ao setor público", disse, aflito, o ministro da Economia Paulo Guedes, horas depois de Jair Bolsonaro, o seu chefe, declarar, em alto e bom som para o mercado de capitais, a bolsa de valores e os investidores nacionais e estrangeiros ouvirem, que "o Brasil está falido".
"O que ele procurou afirmar é que nós temos uma primeira onda de preocupação, que é a saúde, e temos uma segunda onda, que é a questão económica, pode ser que ele se tenha expressado de uma forma, digamos assim, que não foi a melhor", traduziu no fim de março do ano passado o vice-presidente Hamilton Mourão, no dia seguinte a Bolsonaro ir à televisão chamar a pandemia de "gripezinha" e os receios da população de "histeria".
Há outros, mas o general na reserva é, hoje por hoje, a maior referência na arte de traduzir discursos de bolsonarês para português.
Duas semanas antes da "gripezinha", já mostrara as suas credenciais como intérprete: num evento com fuzileiros, Bolsonaro afirmou algo entendível por qualquer falante médio de português como uma ameaça de golpe militar - "a democracia e a liberdade só existem enquanto as suas respetivas Forças Armadas o quiserem"; Mourão foi então obrigado a traduzir para "o que ele quis dizer é que, quando as Forças Armadas são comprometidas com esses valores, o país se sustenta. Olhe a Venezuela, lá as Forças Armadas não estão comprometidas".
Também o célebre "vou interferir e ponto final", dito por Bolsonaro num Conselho de Ministros que levou à demissão do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, por ter entendido, como toda a gente que ouviu a gravação, que a dita interferência seria no comando da polícia do Rio de Janeiro para blindar os seus familiares suspeitos de corrupção, foi objeto de tradução. Um outro fardado, o ministro general Luiz Eduardo Ramos, afirmou em depoimento oficial à justiça que Bolsonaro quis dizer que interferiria "nos ministérios, não na polícia".
Noutra ocasião, Bolsonaro disse que as medidas de combate ao coronavírus já estão a provocar desabastecimento de alimentos; a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, a intérprete de serviço na ocasião, traduziu para "não há desabastecimento de alimentos", ou seja, exatamente o contrário do que havia dito o presidente, sinal das diferenças profundas entre a língua de Camões e o idioma oficial do capitão reformado.
Já havia sido aqui notada a diferença entre dois países que habitam o mesmo espaço geográfico, o doce, amável, criativo, diverso, musical e ecológico Brasil, amado mundo afora, e o atrasado, preconceituoso, intolerante, conspirativo, armado e estúpido Bolsonaristão, ridicularizado mundo afora. O que não se sabia é que um e outro falavam línguas diferentes.
Correspondente em São Paulo