No Avião?
(Conto baseado em acontecimentos verídicos)
Como se sabe, as vacinas devidamente ministradas são essenciais para evitar determinadas doenças. As crianças, uma vez imunizadas, ficam protegidas para as infeções alvo das vacinas. Assim acontece em todo o mundo e, naturalmente, em África. São exemplos de doenças evitáveis o tétano neonatal ou o sarampo.
Era uma vez, em 1975, logo nos anos que se seguiram à Proclamação da Independência nas Colinas do Boé, as crianças da Guiné-Bissau nascidas em pleno mato, na savana tropical, começaram a ser sistematicamente imunizadas na perspetiva da redução da mortalidade infantil. Para tal, a médica pediatra, Alice, dedicou-se a conceber um meticuloso programa que foi desenvolvido com apoio da UNICEF e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Os cuidados começavam ainda durante a gravidez das mães, com o fornecimento de um KIT para assistência ao parto. A Drª Alice era de Angola, mas casada com um dirigente do novo governo guineense. Por isso, tinha residência permanente em Bissau. Trabalhava muito. Sempre muitíssimo educada, tanto a sua competência profissional, como a sua amabilidade eram reconhecidas unanimemente.
Poucos anos depois, foi preciso ir ao leste para apoiar os trabalhos aí em curso e avaliar a evolução do Programa de Vacinação. Então, meticulosamente, Alice preparou documentação e mantimentos simples. Foi acompanhada por um dirigente do Ministério da Saúde Pública e por um consultor da OMS de nacionalidade portuguesa. O motorista do potente jeep Land Rover encheu os depósitos suplentes com carburante e organizou a saída pelas 6 horas da manhã do dia seguinte. Era o mês de janeiro, como sempre associado a clima ameno. Adivinhava-se que a viagem e estadia iriam decorrer sem problemas. Era necessário encerrar os dados do ano anterior, bem como as contas do projeto para serem apresentadas à Cooperação do Quebec, que ali financiava as operações de Saúde.
A travessia do Rio Corubal foi aventura tranquila. A barcaça parecia estar à espera da equipa da Drª Alice na margem direita. Uma vez no Boé, iniciaram-se as visitas às tabancas, só atrasadas por grupos de dezenas de macacos que dificultavam o andamento do jeep. Todos ficaram três noites na região.
No final dos trabalhos, um dos dirigentes locais, sugere o regresso de avião porque o voo da Companhia Guineense que fazia a viagem Conacri para Bissau tinha aí uma curta escala. O avião era um Dakota que a Força Aérea Portuguesa entregara ao governo do PAIGC. Era pilotado por um cooperante civil muito experiente a aterrar na pista do mato, depois de afastar cuidadosamente os animais que aí pastavam.
Então, a Drª Alice foi convidada para ser a primeira a embarcar no avião, seguida pelo Consultor da OMS. Depois de fechada a porta, eis senão quando, o piloto se levantou e pediu ajuda aos passageiros para saírem e empurrarem o avião porque não conseguira por os motores a trabalhar. Assim aconteceu. Uns tantos passageiros foram empurrar a aeronave que imediatamente deu sinal pelo movimento das hélices.
Antes de levantar voo, Alice exclama para o seu colega:
- Então tu vais no avião que pega de empurrão? Não tens medo?
- Ó Alice, tenho pressa de regressar para ver minha mulher e filhos!
- Olha, eu cá não vou. Volto de jeep!
Epílogo:
Ele e ela chegaram a casa. Ele antes e ela depois.
Ninguém acreditou no episódio.
Ex-diretor-geral da Saúde
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