Não podemos deixar o futuro ao arbítrio dos ditadores e dos seus lacaios
O livro que acabo de publicar -- Vivências e Reflexões Geopolíticas: para onde vamos? -- reúne os textos que fui escrevendo, fundamentalmente no Diário de Notícias, durante os tempos da pandemia da COVID-19 e da invasão da Ucrânia. Mas vai bem mais longe do que esses dois grandes acontecimentos de impacto planetário. Aborda vários outros temas que têm marcado as relações internacionais nos últimos três anos e que mostram claramente que a ordem global chegou a uma encruzilhada histórica. Era essa uma ordem que começara por ser definida por quatro décadas de Guerra Fria e por todo o processo de descolonização, a que se seguiram três décadas de globalização e de edificação de um sistema político e económico multilateral.
A pandemia e Vladimir Putin vieram pôr em causa as certezas que se haviam construído ao longo desses tempos. Por isso, a questão mais importante que levanto ao longo do livro é a de saber para onde vamos. Que nova ordem internacional está na forja? Esta é uma pergunta que pode para já parecer quase impossível de responder, mas que é primordial.
Liderar é explicar de forma convincente o sentido das transformações em curso, dar-lhes uma direção positiva e mobilizar os cidadãos para que participem ativamente nesse processo de mudança. Assim, em muitos dos textos, procuro avançar duas teses, que creio poderem balizar o futuro: que é preciso reforçar a cooperação internacional e que as ditaduras são inaceitáveis, não têm justificação ideológica. Intento igualmente demonstrar que certos valores são universais e não apenas um privilégio das democracias ou uma imposição da pretensa modernidade e da arrogância do Ocidente. O direito à liberdade de expressão tem o mesmo valor na Califórnia que na província autónoma de Xinjiang, nos confins das terras uigures na China. O voto livre é tão importante na Chechénia do cruel Ramzan Kadyrov como na Bretanha do liberal Emmanuel Macron ou na Guiné Equatorial do temível Teodoro Obiang, que ainda por cima é nosso parceiro na CPLP. Nestas e noutras causas não há europeus ou americanos, de um lado, e outras culturas, do outro.
A cooperação internacional passa pelo reforço das instituições multilaterais que foram sendo arquitetadas desde 1945. Incluem as Nações Unidas, as instituições financeiras internacionais, as organizações regionais, como a União Africana, a União Europeia, a Liga Árabe ou a ASEAN, no sudeste da Ásia, bem como todas as outras criadas com o objetivo de unir e não de dividir ou criar rivalidades entre os Estados. O combate contra as pandemias, as alterações climáticas, o terrorismo, os cartéis das drogas, a procura de solução para a pobreza e a limitação da corrida aos armamentos, são alguns dos principais exemplos que mostram quão necessária é a cooperação entre os Estados. O futuro exige a promoção da solidariedade entre os povos.
As ditaduras, para além de não respeitarem os direitos básicos das pessoas, são um perigo para a paz. Violam os princípios básicos da lei internacional -- que foram explicitamente lembrados na resolução aprovada pela Assembleia Geral da ONU a 23 de fevereiro, que condena a invasão da Ucrânia pela Rússia e reclama a retirada total e imediata das forças ocupantes.
Considero essa resolução um dos documentos mais coerentes produzidos nos últimos tempos pela Assembleia Geral. Recomendo o seu estudo nas faculdades que ensinam relações internacionais. Além de condenar a invasão russa -- e de ter destruído a teoria de que haveria um Sul Global, que se estaria a afastar das posições assumidas pelos países ocidentais -- a resolução lembra-nos os vários documentos que foram aprovados ao longo da história contemporânea, desde a resolução 377 A(V) votada pela Assembleia Geral de 3 de novembro de 1950, intitulada "Unir pela Paz", e muitas outras vistas como fundamentais, como a que define o crime de agressão ou de ataque armado- resolução 3314 (XXIX) de 14 de dezembro de 1974 - e o Memorando de Budapeste de 5 de dezembro de 1994, em que a Federação Russa se comprometeu a honrar a independência e a segurança da Ucrânia.
O livro dedica vários textos à China. Aproveito para referir a posição que a China publicou há uma semana sobre a invasão da Ucrânia. Apesar de ser impossível de implementar e de pender a favor da Rússia, a declaração não põe em causa a ordem internacional existente, nem a importância do multilateralismo. É importante ter isso em conta, quando se tentar responder à interrogação sobre para onde vamos.
Conselheiro em segurança internacional
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU