Não ignorar os “stãos” e o que fica longe

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Um avião caiu no Dia de Natal no Cazaquistão e foi notícia. Em regra, um acidente aéreo garante o seu espaço nos jornais e, mais ainda, nas televisões se houver imagens. E, isto, mesmo quando o desastre é longe, como neste caso, num dos sete “stans”, ou “stãos” em português. Não há aqui grande mistério no sentido de “stan”, é simplesmente a palavra de origem persa para “terra”. Portanto, Cazaquistão é “a terra dos cazaques” como Tajiquistão é “a terra dos tajiques” e Uzbequistão é “a terra dos uzbeques”.

No fundo, é como “land” nas línguas germânicas, que também significa “terra”. Por isso temos, já na versão portuguesa, a Islândia, a Gronelândia, a Holanda ou a Irlanda. E a Inglaterra só não é “Inglândia” “ou Inglanda” porque os normandos, ao conquistarem-na há mais ou menos 1000 anos, traduziram para “Angleterre” e o nome francês serviu de modelo para outras línguas latinas.

Estive em reportagem três vezes no Cazaquistão e sei como o país merecia ser muito mais noticiado do que é. Se quisermos recuar quase um milénio, foi dali que veio o grosso das tropas de Genghis Khan, exímios cavaleiros de língua turca que se juntaram às hordas mongóis.

Foi ali também que Estaline fez explodir a primeira bomba atómica soviética em 1949, atingindo a paridade estratégica com os Estados Unidos, o que impediu que a Guerra Fria se tornasse um dia quente ou até mesmo escaldante. Foi dali, da Base de Baikonur, que Yuri Gagarine partiu para o primeiro voo espacial e ainda se descola atualmente para a Estação Espacial Internacional.

O Cazaquistão é hoje um importante produtor de petróleo e gás natural e o principal exportador de urânio, sendo essencial para as centrais nucleares chinesas, mas também tendo os Estados Unidos como cliente. A cooperação nuclear com a França está igualmente a desenvolver-se a ritmo acelerado, em especial depois de uma série de mudanças de regime em África terem posto em causa tradicionais fontes de aprovisionamento em urânio pelas centrais nucleares francesas. Do ponto de vista comercial, a geografia dá também centralidade ao Cazaquistão, pois é atravessado pelo chamado corredor médio da Nova Rota Chinesa inspirada na antiga Rota da Seda.

Nono maior país do mundo (e o maior de todos os que não têm acesso aos oceanos), o Cazaquistão tem dois vizinhos poderosos, a Rússia e a China, com os quais tem de manter relações equilibradas, sem vassalagem a nenhuma delas. Desde a independência, em 1991, a aposta foi numa diplomacia multivetorial, que passa também por uma boa relação com os Estados Unidos e a União Europeia.

A invasão russa da Ucrânia obrigou esta diplomacia multivectorial a reinventar-se, pois as sanções ocidentais à Rússia complicam a economia cazaque e põem o país sob uma espécie de vigilância. Internamente, a existência de fortes comunidades russa e ucraniana é outra razão para um permanente exercício de equilibrismo diplomático, em defesa da coexistência étnica. A favor do Cazaquistão joga o presidente Kassim-Jomart Tokayev ser um diplomata de carreira, sucessor de Nursultan Nazarbayev, o pai da independência conseguida aquando da desagregação da União Soviética.

O avião que caiu era de uma companhia do Azerbaijão. Não é um “stão”, mas sim um “ão”, mas também um país com uma centralidade geopolítica maior do que se poderia pensar, mesmo ficando longe. Tema para outra análise, noutro dia.

No jornalismo, a proximidade sempre foi um critério importante para seleção das notícias. Uma pequena tragédia no país pode ter mais destaque do que uma grande tragédia noutro continente.Sempre estaremos, pois, mais atentos ao que se passa em Lisboa do que ao que acontece em Aktau, a cidade próxima do local onde caiu o tal avião azeri, que ia de Baku para Grozny, no Cáucaso russo.

Mas é importante sublinhar que, num mundo cada vez mais globalizado, em que, por exemplo, o ataque dos houthis aos navios que navegam ao largo do Iémen pode fazer aumentar o preço da gasolina ou de um telemóvel, ignorar automaticamente tudo o que se passa na selva colombiana, no Sahel, na Síria pós-Assad ou nos “stãos” é um erro para os jornais, mas sobretudo é grave nos círculos de decisão. A Al-Qaeda, recordemos, preparou o ataque a Nova Iorque num “stão”, o Afeganistão.

Diretor-adjunto do Diário de Notícias

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