Não é uma “brincadeira”. E eles sabem
O perigo mora em casa e na escola, mais do que numa esquina de rua ou num túnel escuro. O perigo mora nas famílias, nos colegas de escola e nas pessoas mais próximas, mais do que em estranhos de capuz que surgem inusitadamente. O perigo mora nas mentes dos adultos que teimam em ver as crianças e jovens como “mini-pessoas” que têm “brincadeiras infantis” e “brincadeiras parvas” na adolescência, desvalorizando o que nada tem de ingénuo, ao invés de os verem como pessoas inteiras que sabem que o que estão a fazer constitui violência e que do outro lado está alguém a senti-la como tal.
As primeiras duas considerações são baseadas em factos – a maioria dos crimes desta natureza são cometidos por pessoas próximas da vítima, em locais que frequenta. Já a terceira é baseada na habitual invalidação e desconfiança perante os apelos dos e das jovens, realidade que fui observando ao longo dos anos. Segundo o relatório da UNICEF divulgado esta semana, em Portugal é reportado um caso de violência ou abuso sexual por cada dia de aulas.
Se este número o/a impressiona, deixe-me dizer-lhe que os números reais serão maiores, pois só chegam a queixas reais aqueles que se libertaram da culpa, da vergonha e do medo da humilhação. Na categoria de violência e abuso sexual entra o toque nas partes íntimas de uma criança ou obrigar a criança a tocar nas partes íntimas de outra pessoa, assim como qualquer ato sexual indesejado e que possa resultar em lesão, dor ou sofrimento psicológico (para esclarecimento, a ONU considera como “crianças” as pessoas com menos de 14 anos, sendo que a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança coloca o limite nos 18 anos).
São contactos físicos sem consentimento, é coação sexual, são atos exibicionistas. É uma rapariga chegar à escola e ter rapazes a tentar espreitar por baixo do seu vestido, entre gargalhadas que a deixam gelada. É fugir mais ou menos disfarçadamente daquele rapaz que toca no corpo dela mesmo quando ela repete um “não”. É ver a sua fotografia tirada num contexto íntimo a circular pelos telemóveis da turma, fazendo-a ter pensamentos de auto-destruição. É ter de escolher um caminho mais longe para ir para casa para evitar cruzar-se com aquela pessoa que a vai desestabilizar. É ter pesadelos com ir para a escola porque ouve insultos sobre a sua orientação sexual, ou sobre a sua vida amorosa. O trauma é transmitido para a vida adulta, alerta a agência da ONU, enfrentando “riscos mais elevados perante doenças sexualmente transmissíveis, abuso de substâncias, isolamento social ou problemas de saúde mental, bem como (...) dificuldades em formar relações saudáveis”.
Será quase certamente o caso do jovem que, em fevereiro em Bragança, foi sodomizado por outros oito, numa “brincadeira” de “simulação de exames médicos à próstata”. Na altura, surgiram alegações de que a assistente operacional assistiu à situação e “nada fez”. De “brincadeira” em “brincadeira” se vai ampliando os números, e as escolas se vão tornando espaços inseguros. Eduque-se os adultos para verem os jovens como iguais, e os jovens para serem responsabilizados como crescidos. Porque a violência é percepcionada instintivamente por todos os seres vivos, sem espaço para dúvidas.