Na montanha mágica

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Davos, para mim, ainda é Berghof, o Sanatório d’A Montanha Mágica, de Thomas Mann, para onde parte Hans Castorp pouco antes da Grande Guerra, a fim de visitar o primo Joachim, enfermo de tuberculose. Castorp entra ali num recanto do “mundo de ontem” e das suas personagens: o doutor Behrens, director do Sanatório, o seu jovem assistente dr. Kro- kowski, um pioneiro da Psicanálise, e o residente Ludovico Settembrini, um italiano ilustrado e progressista.

Mas em 1971, quando Davos passou a ser o cenário do Fórum Económico Mundial, o mundo mágico de Thomas Mann, com as suas tertúlias humanistas, foi substituído pelo mundo real da finança e da política, com as suas reuniões multitudinárias.

O fundador do Fórum, o desconhecido que se lembrou de promover o encontro dos famosos, o homem que, todos os anos, convoca para aquela montanha mágica a crème de la crème da finança e da política do globo, é Klaus Schwab, um engenheiro mecânico alemão, com um doutoramento em Friburgo e um Master em Administração Pública em Harvard. Schwab tratou de fazer do Fórum um encontro “exclusivo”, onde os menos conhecidos pagam para ver os mais conhecidos e para poderem dizer aos ainda menos conhecidos que lá estiveram.

Este ano, o Fórum voltou a não desiludir. O tema era Colaboration for the Inteligence Age e estava lá “toda a gente”. “Colaboração” é a palavra-chave numa organização que tem sido o centro do globalismo e do optimismo globalista e que proclama como missão “construir um mundo melhor” com vista a alcançar “o Progresso” através do “poder do engenho humano, do empreendedorismo, da inovação, da cooperação e da verdade”. São princípios que poderiam constar da agenda de qualquer respeitável loja maçónica de há 200 anos ou de uma ONG subsidiada por Soros e candidata a fundos europeus.

Em 2016, Joe Biden, vice-presidente de Barak Obama e dos EUA, avisara os magnatas da finança e da política reunidos em Davos que “o desmoronamento da classe média”, na América e na Europa, seria “terreno fértil” para “políticos reaccionários, demagogos vendedores de xenofobia, entusiastas anti-imigração, nacionalistas e isolacionistas.”

Neste comentário, Joe Biden ia ao encontro do conselho que Samuel Francis, um “intelectual paleo-conservador”, já dera a Pat Buchanan: que abandonasse a retórica do “mercado livre” do conservadorismo anglo-saxónico bem-educado e que apelasse à classe média e à classe operária americanas em crise, invocando a independência e a preferência nacional. Isto porque, perante a retórica globalista de Davos e os seus efeitos, os “deixados para trás” da globalização iriam erguer-se, “em nome dos interesses e da soberania nacional”, numa “reacção nacionalista” que “provavelmente assumiria um modo populista”.

Francis dizia tudo isto em 1996. Vinte anos depois, os estragos no Rust Belt e nos Apalaches dariam a vitória a Donald Trump. Em 2020, com a covid e tudo o mais, Biden ainda conseguiria ganhar, mas 2024 veria o regresso em força de Trump.

E os de Davos tiveram este ano de ouvir à distância os avisos do presidente - que, para alguns, terão ecoado naquela montanha mágica como um requiem dos encontros exclusivos que vinham tendo.

Politólogo e escritor

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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