Na corda bamba

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Olha com atenção para os céus;
vê como as nuvens estão longe de ti.

(Job, 35-5)

Quando esteve em Lisboa, quis ver os biombos namban. Sabia que um deles, pelo menos, mostrava um marinheiro português, de nariz imenso, a caminhar no cordame de uma nau do tempo das Descobertas. Dias depois, na manhã do regresso à América, quis despedir-se da Torre de Belém, onde pensava fazer uma travessia audaz. Estivera lá na véspera, escolhera até a árvore onde iria amarrar o cabo, fizera anotações frenéticas num caderno preto, gatafunhos de um sonho nunca concretizado. Enviei-lhe depois os discos que pedira, Amália e Madredeus, em troca ofereceu-me Trois Coups, o seu primeiro livro, obra raríssima, pois, vá-se lá saber porquê, em tempos comprara todos os exemplares disponíveis.

"A Morte - a Morte de que eu te falo - não é a que vai seguir-se à tua queda, mas a que precede no arame a tua aparição. Antes de o escalares é que morres", escreveu Jean Genet em Funambule, o ensaio-poema que dedicou ao seu amante, o funambulista argelino Abdallah Bentaga. Na verdade, é aí, no desafio orgulhoso da morte, que reside o fascínio exercido pelos que ousam caminhar nas alturas sobre um cabo de aço, apenas com o auxílio de uma vara - e de um ego maior do que o medo. Por mais que pensemos nisto, nunca conseguiremos alcançar inteiramente o que levará alguém a preparar durante seis anos uma travessia clandestina entre as Torres Gémeas de Nova Iorque; e a esticar um cabo de aço lá em cima, a 440 metros de altura, percorrendo-o de seguida por oito vezes, numa distância de 50 metros, para trás e para diante, durante 40 minutos. Um pé atrás do outro, um homem e uma corda, sem lugar a deslizes, sem margem para falhas.

Às tantas, durante a travessia épica, começou a chuviscar nos céus. Uma gaivota aproximou-se dele e descreveu vários círculos, espantada pela sua presença ali, entre nuvens e ventos poderosos, ventos que sopravam com uma força tal que fazia vibrar todo o World Trade Center. A meio da travessia, acenou à pequena multidão longínqua, lá em baixo, e deitou-se no cabo, a contemplar o céu, ou a grandeza da sua pessoa, no gozo de um momento efémero que, ao menor deslize, seria o último, fatalmente o último.

Philippe Petit disse uma vez que a máxima beleza para a travessia das Torres Gémeas foi não existir razão alguma para fazer aquilo ("probably the most beautiful part of the event is that there was no why"). Afirmou também, noutra ocasião, "só o inútil me encanta". De facto, não existe nenhum motivo racional - político, comercial ou outro - para arriscar a vida de uma maneira tão extrema, de uma forma tão gratuita, perfeitamente inútil. Se acaso tivesse caído, teria uma morte estúpida, tremendamente estúpida, destituída de sentido e propósito, mas também uma morte bela, maravilhosa, feita de entrega total, em despojamento completo. As razões para o seu prodígio de equilibrismo relevam, pois, do obscuro domínio do psicológico, de paixões e emoções ignotas, da vaidade e da loucura, do orgulho e preconceito. No prefácio que escreveu para um dos livros, Tratado do Funambulismo, o seu amigo Paul Auster escreveu que enquanto outros, como os cascadeurs, acentuam e sublinham os riscos que correm, Petit tudo faz para que as suas travessias pareçam naturais e fáceis, graciosas, a coisa mais natural do mundo, como se não houvesse perigo algum em andar sobre um arame a 400 metros de altura, com a morte à distância de um milímetro, espreitando a cada passo. Na corda bamba.

A sua mãe recordou-o na infância como um rapaz "insolente e individualista", alimentado pelo supremo desejo de étonner les gens e, de facto, a ambição de espantar o mundo foi a força motriz de Phillippe Petit ao longo de toda a vida e das suas várias actuações pelo mundo, começadas em Notre-Dame, Paris, em Junho de 1971, prosseguidas na Austrália, em Nova Iorque, na Torre Eiffel, na Alemanha, em Jerusalém e em Tóquio, na Bélgica e em Viena. Com desmedida imodéstia, define-se como um "rapaz da Renascença", um "trovador vagabundo", um "sonhador profissional" ou um "poeta do céu" que "cultiva a rebeldia intelectual". É grande a sua pulsão subversiva, típica do tempo em que viveu, enorme o seu desejo transgressivo, a sua paixão por travessias ilegais, com destaque para a mais histórica de todas, a das duas torres. Concluída a façanha, foi detido e algemado, mas, não por acaso, as fotografias mostram-no a sorrir felicíssimo, no apogeu do poder e da glória, depois de conseguir apropriar-se do chapéu de um polícia, fazendo-o rodopiar no seu rosto para delícia de dezenas de repórteres (já antes, em 1973, na travessia de Sydney, furtara o relógio de pulso de um dos polícias que o prendiam). "Immense happiness!", foram as primeiras palavras que, na euforia do triunfo, dirigiu aos jornalistas que o cercavam. A multidão vaiou a polícia, que o transportava algemado, e Philippe disse à imprensa, com desarmante candura: "When I see three oranges, I juggle; when I see two towers, I walk."

No dia seguinte, as televisões transmitiriam o discurso de demissão do presidente dos Estados Unidos. Com o Watergate, a América perdia a inocência, que, ao início daquela manhã de quarta-feira, 7 de Agosto de 1974, lhe foi momentaneamente devolvida na baixa de Manhattan por um jovem funambulista francês trajado de negro e com a pele alvíssima, quase translúcida. Feita com absoluto desprendimento, até da própria vida, a travessia entre as Torres Gémeas fora uma dádiva incondicional daquele rapaz de 24 anos - a Nova Iorque e ao mundo. Antes de entrar no helicóptero que o levaria da Casa Branca, Nixon terá dito aos jornalistas: "I wish I had the publicity that Frenchman had."

Por muito que custe a alguns críticos, mais snobes ou austeros, não é exagero classificar a travessia das Torres Gémeas como um dos maiores e mais belos gestos artísticos de todo o século XX. Sem se referir a Petit, um ensaio de Georges Didi-Huberman, intitulado Sur le Fil, ajuda-nos a perceber porquê (há tradução brasileira, Sobre o Fio, ed. Cultura e Barbárie, 2019). Nele, Didi-Huberman começa por salientar que nenhuma obra-prima pode ser compreendida abstracta ou isoladamente, o que constitui um curioso paradoxo: uma obra artística deveria apresentar-se como um absoluto, uma estrela solitária, o cúmulo do para si, mas o facto é que as obras-mestras só existem para um mundo, em diálogo com quem as observa e contempla, em relação com o "mundo da arte", que as escolheu e lhes deu um estatuto singular e especial, a eminência e a autoridade reservadas às maiores criações humanas. Outro paradoxo: uma obra-prima só ocupa um lugar central no "mundo da arte" porque foi capaz de ultrapassar os limites definidos por tal mundo, ou seja, é central porque periférica ou marginal, intrinsecamente vanguardista, revolucionária (daí que, na polémica gerada em torno da artista Grada Kilomba e da Bienal de Veneza, o que mais surpreende não são as idiotas acusações de racismo a um dos membros do júri, mas a confrangedora pobreza e falta de inventividade e de originalidade das preguiçosas propostas de Kilomba, todas de um conformismo atroz, em alinhamento expectável com a pauta dominante e em voga, em seguidismo fácil das tendências que hoje tiranizam as artes contemporâneas, em que raros são os artistas de ascendência africana que não falem de passados coloniais e escravaturas pretéritas; por maior necessidade que haja em dar voz aos antes oprimidos, o que se afigura incontestável, não haverá rasgo e rebeldia para outros temas e matérias, não há mais assuntos merecedores de atenção?).

Georges Didi-Huberman afirma em seguida que o nosso sonho e arquétipo é o do artista soberano, tido por encarnação perfeita do ideal de liberdade plena que nos desesperamos por alcançar nas nossas vidas quotidianas. Contudo, a ideia de soberania artística não é tão nova como julgamos nem surgiu apenas nos tempos de Courbet ou de Rimbaud, e da Comuna de Paris. Ela nasceu muito antes, nos alvores do Renascimento, quando Dante e os poetas humanistas pegaram em conceitos desenvolvidos pelos juristas medievais - a fórmula arma et leges, difundida a partir do Corpus Iuris Civilis de Justiniano - e os aplicaram ao mundo das artes,
desenvolvendo a concepção arma et litterae. Pela pena de Lorenzo Ghiberti e de Leon Batista Alberti, começou então a falar-se da "mestria" dos artistas, associando-lhes a noção de liberdade e de plenitude de poder (plenitudo potestas), a ponto de a pintura ser considerada uma arte "digna de homens livres" (se quisermos, uma arte só digna de homens livres). A liberdade do artista é, antes de mais, liberdade de dádiva, de oferta incondicional da sua obra, doravante entregue ao mundo, que também dela deverá fruir de forma inteiramente livre. Por isso, Didi-Huberman interroga-se - e esse é o trecho decisivo do seu ensaio - sobre se um artista não será apenas soberano sobre o fio, na corda bamba, no sentido em que a sua condição é, por natureza, frágil e instável, e que a precariedade dessa condição se exprime através da dádiva - o que, no caso dos funambulistas, pode implicar, no limite, a dádiva da própria vida.

Talvez tudo isto pareça um excesso metafórico, mas o certo é que, centrando-se no funambulista de Genet, Didi-Huberman acaba por confirmar a natureza sumamente artística do gesto de caminhar sobre uma corda, não apenas enquanto performance espectacular, mas também, ou sobretudo, como ilustração da soberania inerente a todos os verdadeiros criadores. Ao vermos Philippe Petit deslizar no arame, compenetrado e sério, mas gracioso e ágil, deparamos com a imagem de uma potência imensa, feita de autodomínio e de nietzschiana vontade de poder: sozinho lá no alto, a 400 metros de distância, o funambulista assenhorou-se nas Torres Gémeas, e por instantes foi deus de si próprio, soberano do mundo inteiro. Como disse depois em diversas entrevistas, foi indescritível a sensação de liberdade que experimentou naquela corda, na companhia de uma gaivota, longe das formigas humanas. Em face disso, talvez o difícil não seja explicar a aparente temeridade absoluta do seu acto, mas porque não temos nós a coragem de seguir-lhe os passos.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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