Na casa de Jeanne Dielman
Numa altura que está patente, em Lisboa, no Museu de Arte Contemporânea/CCB (até 7 de setembro), uma exposição dedicada à cineasta belga Chantal Akerman (1950-2015), eis uma memória que vale a pena revisitar: Jeanne Dielman, por certo o título mais conhecido da filmografia de Akerman, teve a sua primeira apresentação pública no 28.º Festival de Cannes, em maio de 1975 - portanto, há 50 anos.
Como é sabido, e apesar de se tratar de um filme que, ao longo das décadas, foi suscitando muitas e apaixonadas análises, só muito recentemente Jeanne Dielman adquiriu um amplo reconhecimento internacional. Assim, na eleição de 2022 dos “melhores filmes de sempre” (“Greatest Films of All Time”), promovida de dez em dez anos (desde 1952) pela revista britânica Sight and Sound, Jeanne Dielman surgiu em primeiro lugar, seguido por Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958), O Mundo a Seus Pés (Orson Welles, 1941) e Viagem a Tóquio (Yasujiro Ozu, 1953) - na votação de 2012, estes três títulos ocupavam, pela mesma ordem, os três primeiros lugares.
Como “explicar” o aparecimento do filme no primeiro lugar da contagem dos votos de um conjunto de convidados que incluiu críticos, programadores, curadores, arquivistas e docentes (num total de 1639 pessoas)? Houve quem arrumasse a questão (incluindo a própria Sight and Sound) lembrando o facto de Jeanne Dielman ser um marco do feminismo cinéfilo - talvez, e ninguém lhe poderá retirar esse valor; mas será que um rótulo militante, por maior pertinência ou simbolismo que lhe reconheçamos, esgota a riqueza cinematográfica de um objeto?
Respondendo à inevitável pergunta histórica que surgiu - será que, durante o seu meio século de existência, Jeanne Dielman teve um papel determinante na evolução do cinema, a ponto de ser o nº 1 de uma lista dos “melhores filmes de sempre”? -, por mim diria que não, longe disso, foi mesmo um objeto com existência relativamente discreta. O que, entenda-se, não envolve qualquer menorização do filme que me parece (continua a parecer-me) um caso tão singular quanto fascinante de exploração das fronteiras narrativas do espaço e do tempo cinematográficos.
Simplificando (e muito!), digamos que este é o retrato das rotinas de uma mulher de Bruxelas, interpretada pela assombrosa Delphine Seyrig. Essas rotinas envolvem duas situações essenciais: à tarde, prostitui-se, recebendo um cliente na sua própria casa; à noite, depois de o seu filho chegar da escola, prepara-lhe o jantar. À claustrofobia do espaço, acrescenta-se o peso dramático do tempo. Ou melhor, das durações: Akerman encena o dia a dia de Jeanne Dielman através de longos planos fixos (em particular dos seus trabalhos na cozinha), reconhecendo no caráter anódino das situações um pressentimento de tragédia.
Quem viu o filme pela primeira vez há 50 anos, sabe bem das discussões (superficiais, na maior parte dos casos) sobre a duração “excessiva” dos planos de Akerman. Em boa verdade, devemos reconhecer que, perante a esmagadora maioria dos espetadores, o perturbante intimismo de Jeanne Dielman é todos os dias vencido pela boçalidade existencial que os ecrãs televisivos celebram com o Big Brother e afins. Dito de outro modo: a formatação de um novo “voyeurismo” vai (des)educando, implacavelmente, os olhares que contemplam, ou poderiam contemplar, os contrastes do factor humano.
O filme de Akerman, vale a pena lembrar, chama-se no original Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles. A existência cinematográfica de Jeanne Dielman confunde-se com o endereço da sua casa, como se ela não fosse mais do que um entreposto humano onde a sua identidade, por cruel paradoxo, se afirma e desvanece. No limite, este é um conto moral sobre a decomposição dos laços sociais.