Não se pode proibir o fascismo?
No dia 10 de junho, ouvimos o Presidente da República e a comissária das celebrações do Dia de Portugal, em Lagos, a negarem a ideia de que a nacionalidade portuguesa tivesse por base uma qualquer “pureza” étnica, quando, pelo contrário, se baseia em séculos de cruzamentos de povos.
As palavras de Marcelo Rebelo de Sousa e de Lídia Jorge foram desafiadas, à mesma hora, pelos insultos racistas contra o imã de Lisboa, David Munir, que fora convidado a falar numa cerimónia de homenagem aos antigos combatentes. Isso deu direito a saudação fascista e tudo.
À noite, um grupo de 30 pessoas, associado ao neonazismo, foi à entrada do Grupo de Teatro A Barraca. Agrediram e feriram o protagonista de uma peça sobre Camões, o ator Adérito Lopes.
Os líderes dos partidos e o governo condenaram as agressões, mas passaram mais ou menos ao lado dos insultos islamofóbicos ao xeque Munir. O Ministério Público abriu um inquérito ao caso de A Barraca. A polícia diz que já identificou um dos agressores.
O arauto do Chega também condenou a violência, mas acrescentou um “mas” à questão: “quando é violência contra a direita é boa e pode-se tolerar; quando é outro tipo de violência, temos que condenar”. André Ventura rebuscou um crime não político entre famílias ciganas e supostas ações, que não identificou, de “ocupas”, “extremistas de esquerda”, “de grupos antifascistas” e “ativistas”. Deliberadamente, ele mistura protestos mais ou menos aguerridos, eventualmente discutíveis, mas cuja natureza não é comparável à deliberada pancadaria fascista que manda pessoas para o hospital. Um exercício de cinismo, portanto.
Ainda ontem saiu a notícia de que duas voluntárias da distribuição alimentar a pessoas sem-abrigo, no Porto, foram vítimas de “empurrões e murros” por dois homens que, depois de terem feito a saudação nazi, as acusaram de aumentarem o número de imigrantes no país.
Daqui a uns dias, depois de no domingo se concluírem as manifestações de Lisboa e Porto em repúdio a estes ataques fascistas, este assunto deverá ficar esquecido, tal como ficou esquecida a agressividade e a pequena batalha campal que o Ergue-te e o Grupo 1143 provocaram em Lisboa, no dia 25 de Abril. Como ficou esquecido o ataque a imigrantes no Porto ocorrido em maio do ano passado, que levou cinco pessoas às urgências.
As palavras e condenações dos políticos estão, nestes casos, totalmente ocas. Os instrumentos legislativos disponíveis são inadequados. Medidas problemáticas, como a proibição de manifestações, são tiros no pé na democracia. Não há forma de combater o terror fascista?
Quem fez o 25 de Abril e quem escreveu a Constituição sabia o que era preciso fazer: “Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”, diz o artigo 46 da Lei Fundamental.
Porque é que os tribunais não decretam o cariz fascista e/ou racista do Grupo 1143, do Ergue-te, do “Blood & Honour” e de todos esses grupelhos que têm fé na cruz suástica e na saudação romana? Porque é que esse instrumento constitucional, que decreta a ilegitimidade política da existência desses grupos em democracia, permitindo um tratamento judiciário e judicial bem mais assertivo, não é aplicado? Quem, afinal, não quer combater o fascismo?
Jornalista