Não é ideologia, é economia

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A crise demográfica e de natalidade no Mundo Ocidental é, como sabemos, um fator intimamente ligado às políticas migratórias que, nos últimos anos, fizeram encher o barril de pólvora populista com que nos confrontamos hoje. Sem capacidade (ou vontade) de assegurar uma classe média robusta e feliz, a economia de mercado ocidental alargou, nas últimas décadas, distâncias entre os extremos da pirâmide social e deixou grande parte dos jovens adultos sem condições para se independentizarem, quanto mais criar família.

Ora, esta baixa taxa de natalidade em países desenvolvidos tem sido precisamente instrumentalizada como uma bandeira ideológica da direita populista e conservadora, que ganha tração a nível global. Acenam-se teorias conspiratórias, como a da “Grande Substituição”, e evocam-se reflexos de uma crise moral ou cultural, associando a crise demográfica ao declínio de valores tradicionais, como o casamento e a família.

Nesta última semana, precisamente no mesmo dia 10 de Junho em que o discurso da escritora Lídia Jorge fez eriçar tantas reações nacionalistas, passou quase incógnito um relatório publicado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) sobre a Situação da População Mundial em 2024. Intitulado A Verdadeira Crise de Fecundidade, o documento destaca a queda sem precedentes nas taxas de natalidade, de 3,3 filhos por mulher em 1990 para 2,3 em 2024, com mais da metade dos países abaixo do nível de reposição de 2,1 filhos por mulher. E a causa mais apontada pelas mais de 14 mil pessoas inquiridas, em 14 países, nada teve a ver com ideologia: 39% dos entrevistados citam limitações financeiras como a principal barreira para ter o número de filhos desejado.

O relatório da UNFPA também é claro a desacreditar a maioria das chamadas políticas pronatalistas promovidas pelos regimes conservadores populistas, como restrições ao aborto e à contraceção ou a introdução de cheques-oferta por cada nascimento, alertando que tais abordagens podem violar direitos reprodutivos e são ineficazes, como demonstrado pelo fracasso de países como a Hungria em elevar significativamente sua taxa de fertilidade. Ao invés, as principais recomendações do relatório incluem o investimento em habitação acessível, promoção de trabalho digno e estável, reforço das licenças parentais e da conciliação entre vida familiar e profissional, creches gratuitas, acesso universal à saúde reprodutiva e políticas inclusivas que apoiem todos os tipos de famílias, incluindo mães solteiras, casais não-casados e famílias não-tradicionais, reconhecendo a diversidade das estruturas familiares.

O problema, conclui, não está na diferença entre os desejos individuais e os objetivos do Estado, mas sim em políticas públicas que não estão alinhadas com as necessidades reais das pessoas. Não é ideologia, é (sobretudo) economia.

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