Musk e os violadores de meninas brancas

Nos últimos dias, em surto, Musk apelou ao rei britânico para que derrube o governo, disse que o PM Keir Starmer devia estar preso por "encobrir" aquilo a que designa de "violação da Grã-Bretanha" e criou uma sondagem na qual pergunta se os EUA devem “libertar” o Reino Unido (a pensar numa libertação do tipo daquela que Putin diz estar a fazer na Ucrânia?). E há milhões a levá-lo a sério.
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Até há dias, eu, como a maior parte dos portugueses, nunca tinha ouvido falar de um escândalo de abusos sexuais ocorrido no Reino Unido e que ficou conhecido como the grooming gangs ou, numa tradução portuguesa bastante inexacta,“gangues de aliciamento”.

Há um bom motivo para isso: trata-se de um assunto intrincado e referente a acontecimentos noutro país, no final do século XX e início deste. Em causa estão situações nas quais adolescentes e crianças, sobretudo raparigas e muitas delas em instituições do Estado, eram seduzidas quer emocionalmente, quer com ofertas de dinheiro, drogas, etc, para a seguir serem colocadas ao serviço de uma rede de abusadores (um modus operandi comum nas redes de prostituição/proxenetismo). Envolvendo variados grupos de perpetradores em vários locais do país e, estima-se, vários milhares de vítimas, os casos, agregados sob a mesma citada designação, levaram a vários julgamentos e condenações, assim como a uma série de relatórios sobre o que correu mal na proteção das crianças e jovens em causa e na investigação policial/criminal - e foi muito, como se constata a partir das conclusões desses mesmos relatórios.

Um deles, publicado em 2014 e ficando conhecido como “Relatório Jay” (a partir do nome da principal autora, Alexis Jay), revelou que na cidade de Rotherham (norte de Inglaterra) cerca de 1400 crianças/adolescentes tinham sido abusadas de 1997 a 2013, predominantemente por britânicos de origem paquistanesa, e que, além de pouco esforço e interesse da polícia, houvera entre as autoridades pruridos em investigar e denunciar o que se passava por temor de acusações de racismo. Como consequência do relatório, ocorreram demissões em cascata, quer na direção da polícia quer nos serviços de proteção de menores, e uma operação policial – operação Stovewood, iniciada em 2015 –, a qual em 2024 tinha resultado num total de 36 condenações, sete das quais em setembro desse ano e dizendo respeito a crimes cometidos entre 2003 e 2008 sobre duas vítimas, com os sete arguidos a serem sentenciados num total de 106 anos de prisão.

Noutra cidade nortenha, Rochdale, foi descoberta outra rede de abuso, igualmente de britânicos de origem paquistanesa, que resultou na condenação de nove homens em 2012.

Estes factos foram profusamente noticiados na imprensa britânica e internacional ao longo dos anos, como qualquer pesquisa no Google permite concluir, e vários relatórios sobre o assunto, incluindo o Jay, estão online.

Em 2020, um outro relatório, este do Home Office (o ministério da Administração Interna britânico) e ordenado pelo governo conservador de Theresa May, concluiu, através da análise de estudos sobre as redes de abuso sexual em Inglaterra, Escócia e Gales, pela inexistência de provas de que os “grooming gangs” identificados fossem sobretudo constituídos por homens de origem asiática - na verdade, a maioria era constituída por caucasianos com menos de 30 anos.

Na altura (há quatro anos) o procurador Nazir Afzal, que dirigiu a acusação ao gangue de Rochdale, comentou: “Isso confirma que os homens brancos são os abusadores mais comuns, algo raramente mencionado pelos comentadores de extrema-direita. Mas o relatório não nega que em alguns dos casos mais conhecidos há uma predominância de perpetradores de ascendência asiática. O perigo é que, focando-nos só na etnia dos perpetradores, não vejamos o essencial, que é o facto de as vítimas serem invariavelmente raparigas e mulheres vulneráveis e a quem não se dá crédito.”

Nazir Afzal, ele próprio de ascendência paquistanesa e muçulmano, falava já em 2020 dos “comentadores de extrema-direita” porque este assunto tem sido periodicamente trazido à colação, em revoadas, pela extrema-direita e até pelo Partido Conservador - mesmo se este esteve no poder nos últimos 14 anos, com amplo tempo para todas as investigações e alterações legais que entendesse fazer.

Isto vem tudo a propósito de quê? Bom, da campanha alucinada que Elon Musk, o bilionário proprietário da Tesla e do Twitter (ao qual deu o nome de X) e recente melhor amigo de Donald Trump, de cuja administração/governo fará parte (se entretanto não se zangarem) está a conduzir na rede social que detém contra o primeiro-ministro britânico Keir Starmer, acusando-o de, enquanto chefe do Ministério Público britânico, ter encoberto os crimes dos “gangues de paquistaneses” e aquilo a que dá o nada racista nome de “violação da Grã-Bretanha”.

Nos últimos dias, em surto, Musk apelou ao rei britânico para que derrube o governo (coisa que evidentemente o monarca, coitado, não poderia fazer mesmo que quisesse), disse que Starmer devia estar preso e, nesta segunda-feira, criou uma sondagem na qual pergunta se os EUA devem “libertar” o Reino Unido (supõe-se que estará a pensar numa libertação do mesmo tipo daquela que Putin pretende estar a fazer na Ucrânia). Antes tinha lançado uma petição a exigir a Starmer que abandone o governo, a qual já tem milhões de assinaturas.

E é aqui que aquilo que seria apenas a atividade infausta de mais um troll internético com muitos seguidores se transforma em algo de aterrorizador: há milhões de pessoas que leem o que Musk diz e acreditam, sem terem nem sequer procurarem – era o que faltava, ler notícias da “imprensa vendida” ou, ainda pior, relatórios de centenas de páginas – qualquer informação sobre o assunto. Motivo pelo qual já temos, naturalmente, o líder da extrema-direita portuguesa a cavalgar a histeria.

Para não variar, o Twitter português está cheio de gente que afiança que “este escândalo que se está a passar em Inglaterra não está a ser noticiado cá”, e garante que “nunca antes se tinha falado disto”; porém, se questionada sobre o que ao certo sabe do assunto, partilha artigos da imprensa britânica com anos (provando que nem leem o que partilham) e até printscreens, sacados algures no Twitter, que dizem ser “de um julgamento” (e são, na verdade, de relatórios como o já citado Jay). 

Para resumir: as pessoas estão disponíveis para, sem qualquer prova e na esteira de Musk, acusar o PM britânico de ter andado a encobrir crimes enquanto desempenhava as funções de Procurador Geral da Coroa. Sintomaticamente, o órgão nacional do Chega, no estilo ignominioso que caracteriza a agremiação, titulou: "Primeiro-ministro britânico tentou esconder que milhares de violações eram cometidas por imigrantes islâmicos". E zás, há logo quem partilhe a publicação como "prova".

É como se estivesse tudo doido – e não vale a pena tentar argumentar, tentar chamar as pessoas à razão: quem as contraria está necessariamente a “negar os abusos sexuais porque os violadores são paquistaneses”.

Que Alexis Jay, a responsável pelo relatório de 2014 que acusou polícia e autoridades de Rotherham de incompetência e preconceito (mas não de “encobrimento”), tenha em 2022 produzido outro relatório, este sobre o abuso sexual em geral em Inglaterra e Gales – incluindo, além dos grooming gangs, escolas e igrejas –, concluindo que se trata de um fenómeno “endémico”, pouco interessa a quem na verdade não quer minimamente (pelo contrário) saber dos direitos das mulheres, meninas e outras vítimas de crimes sexuais, mas apenas usá-las como arma de arremesso.

Isso mesmo diz um comunicado exarado este domingo por um grupo de pressão liderado por Jay, que antes se tinha confessado frustrada com a ausência de interesse do governo conservador na adoção das recomendações do relatório: “A politização da violência sexual ignora o seu impacto perene na vida das vítimas e obsta à aplicação de mudanças vitais de que os sistemas necessitam”.

Advertindo contra a desinformação, o comunicado apela a que as ditas recomendações sejam postas em prática. Interessante notar que entre elas está a de se legislar para forçar empresas tecnológicas como o Twitter a adotar ações eficazes contra o abuso online, assim como a criminalização do não reporte de abuso sexual. Para alguém que, como Musk, fez campanha por um abusador sexual condenado – Trump – e se prepara para trabalhar com ele, decerto essa, a de ser crime não reportar crimes sexuais, é uma ideia que sorri.

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