Muito mais é o que os une…
Não há maneira de 2021 conceder paz eleitoral aos portugueses. Depois de um ciclo presidencial prolongado pela confirmação de Marcelo, pelo surgimento de Ventura e por algum desnorte na esquerda, o prenúncio das autárquicas também veio mexer com o sistema partidário. O modo como Rui Rio utilizou o caso Sócrates contra o governo do Partido Socialista, acusando-o de "hipocrisia" e "demagogia", já o dava a entender. Rio, cometendo a originalidade de propor uma reforma da Justiça atacando simultaneamente o Presidente da República e o primeiro-ministro, deixou-o à vista de todos: vêm aí eleições e, com pandemia ou sem pandemia, haverá combate político.
Ora, António Costa não se ficou. Numa entrevista a este jornal, o chefe de governo desferiu tiradas como "o dr. Rui Rio diz coisas que nem tem noção", considerando que o presidente do PSD nutre "ódio" a jornalistas e magistrados. "Um político num regime democrático pode até não gostar muito do que os senhores escrevem, eu muitas vezes não gosto, mas temos de respeitar e não desenvolver ódio relativamente à comunicação social, assim como temos de respeitar as decisões judiciais". Sem ironias, não poderia estar mais de acordo. Mas, senhores ouvintes, dá-se o caso de a mensagem ser mais sacra do que o mensageiro.
Em qualquer país com um mínimo de cultura democrática, o chefe de governo acusar o líder da oposição de tentações autocratas quanto à imprensa e aos tribunais faria soar campainhas, alarmes e arautos. E em qualquer opinião pública com um mínimo de memória alguém faria o favor de recordar a António Costa que foi ele, enquanto secretário-geral do PS, que enviou mensagens intimidatórias a um jornalista, que foi ele, enquanto primeiro-ministro, que reagiu a Pedrogão Grande dizendo que "a imprensa não sabe lidar com tragédias", e que foi ele, enquanto líder parlamentar, que trocou telefonemas com um colega sobre um "contacto" com o Ministério Público. Previsivelmente, Rio socorreu-se desse passado já longínquo e de outro, mais recente, lembrando a controversa nomeação de José Guerra para a procuradoria europeia, já maioritariamente condenada em Bruxelas.
Em suma, no que concerne a jornais e juízes, Costa e Rio têm pedras de peso idêntico e telhados de vidro semelhante. O que é notável na entrevista do primeiro-ministro ao Diário de Notícias é essa similitude não se esgotar nas matérias de separação de poderes, mas estender-se igualmente à conjuntura política de cada um. Diz Costa que "muito mais perigoso do que o Chega é a contaminação do PSD pelas ideias do Chega" e que aquilo que o preocupa mais na ascensão destes extremismos é o "condicionamento político" que fazem aos partidos democráticos. Torna a ser tudo tão familiar, não é verdade? Costa, primeiro-ministro há quase seis anos, dependeu sempre -‒ sempre -‒ de forças políticas distantes do ideário do Partido Socialista para governar. Fê-lo com o Bloco de Esquerda e com o PCP, e agora apenas com os comunistas, mas deixando-se sempre condicionar ‒ ou "contaminar", para usar o seu termo ‒ por partidos que durante anos juraram inimizade ao PS.
Não comparando o iliberalismo do Bloco e do PC ao populismo de André Ventura, é evidente, desde 2015, que os partidos fundadores da democracia dependerão crescentemente de forças que ou negam a economia de mercado (a esquerda radical) ou não reconhecem a legitimidade do regime que veio de Abril (a direita radical).
Se é só isso que Costa tem para fazer frente a Rui Rio, será, voltando à sua montra de expressões, poucochinho.
Muito mais é o que os une do aquilo que os separa.
Colunista