Moscovo invade e Pequim ganha

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Ao fim de longas semanas de diplomacia para se tentar evitar uma guerra na Europa, a Rússia declarou a independência de parte da Ucrânia, que só a Venezuela, a Síria, a Nicarágua e o Nauru apoiaram e, logo a seguir, invadiu um Estado soberano, reconhecido internacionalmente e membro das Nações Unidas. A ONU e o G7 condenaram a invasão, os Estados Unidos, a União Europeia e o Reino Unido anunciaram sanções e a NATO reforçou o seu mecanismo de segurança coletiva. No momento em que escrevo, a invasão da Ucrânia continua e o mundo espera para ver qual será o próximo movimento de Putin neste jogo de xadrez dramático, sabendo que as sanções aprovadas em Washington, Londres e Bruxelas só terão resultado a prazo.

Do outro lado do mundo, e sem prejuízo para as recentes manifestações de cooperação entre os Presidentes Xi Jinping e Putin, a China não se compromete com nenhuma das partes, apela aos diálogo para a resolução da crise e observa o desenrolar dos acontecimentos. De um dia para o outro, Pequim encontra-se numa posição inesperadamente confortável. Por um lado, o Ocidente e a ONU reafirmaram o princípio da soberania e inviolabilidade dos Estados, que corresponde à posição tradicional de Pequim e, por outro lado, a atenção política e capacidade de atuação militar do Ocidente deixam de estar focadas no Pacífico para se centrarem no Atlântico.

Sem nada ter feito, a China acaba de receber dois grandes presentes já que, do ponto de vista de Pequim e desde que a crise na Ucrânia não se transforme numa guerra aberta de consequências catastróficas, a China poderá trocar a sua neutralidade neste conflito pelo regresso ao relacionamento internacional existente antes da Administração Trump: uma globalização regulada com acesso aos mercados ocidentais sem limitações às suas empresas e aos seus investimentos e sem implicações para os sistemas políticos nacionais. Por outro lado, Pequim poderá sugerir o fim do apoio ocidental a Taiwan ou das críticas à forma como lida com os movimentos de dissidência interna.

A alternativa a um entendimento entre a China e o Ocidente poderá ser a abertura de novos canais económicos, comerciais e políticos entre Pequim e Moscovo, o que enfraqueceria a eficácia das sanções impostas à Rússia e solidificaria a ideia de uma nova guerra fria entre os países que defendem um modelo multilateral regulado pelo direito internacional e onde os assuntos do Mundo são tratados à mesa das negociações e os países que entendem que a defesa da soberania e dos interesses nacionais são mais importantes que a paz e a diplomacia. Aconteça o que acontecer, Pequim será um dos poucos vencedores desta triste semana de guerra na Europa.

Finalmente esta crise deixa claro que o consenso internacional que se estabeleceu no Ocidente após a 2ª Guerra Mundial e que foi reforçado após o fim da Guerra Fria, que defendia que os problemas, desacordos e dificuldades entre os países resolviam-se por meios pacíficos e que as intervenções militares unilaterais não tinham lugar nos instrumentos de política externa está em cheque. O idealismo que nasceu nos escombros do Muro de Berlim está a morrer nas ruas de Kiev e o Ocidente terá que pensar seriamente sobre qual é o seu papel no mundo, incluindo o que está disposto a acordar com a China.


Investigador associado do CIEP/Universidade Católica Portuguesa
bicruz.dn@gmail.com

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