"Desculpe, mas Singapura é uma democracia, ó senhora jornalista, nem lhe fica bem. É uma democracia!.Se vamos por aí... a Rússia é uma democracia..E é! Posso não concordar com aquilo que se passa na Rússia, mas tenho de reconhecer que é uma democracia..Está a dizer-me que a Rússia é uma democracia?.Ó senhora jornalista! Quem é que colocou o Putin no poder?".(jornal i, 21 de maio de 2021).Este é um pequeno excerto de uma entrevista feita a uma candidata do PSD a uma autarquia relevante, Suzana Garcia, candidata à presidência da Câmara Municipal da Amadora. Que retrata, neste slide, o seu "pensamento" sobre Singapura e a Rússia, coisas absolutamente distintas, mas que, na verdade, apenas têm um aspeto em comum: são países antidemocráticos, em que o Estado ordena e não admite, na verdade, contraposição ou desafio político - mesmo se "formalmente" democráticos. Como pelos vistos é do gosto de Suzana Garcia. Já houve muito disso em Portugal, é certo. E ainda bem que na entrevista não se perguntou à candidata do PSD pela Bielorrússia....É naturalmente irrelevante o que a candidata do PSD à Amadora pensa sobre Singapura..O que já não é irrelevante é que o segundo partido mais votado em Portugal, quando tem oportunidade de escolher pessoas, o faça com este critério. Não deixa de ser caricatural que o PSD sinalize que um dos seus modelos atuais, político e cívico, aparentemente e desde logo para a Amadora, seja o da Rússia e de Singapura, democracias "ó senhora jornalista"... E talvez para todo o Portugal? Se isto não fosse risível, dir-se-ia que era feito de propósito para preparar um regresso apoteótico de Pedro Passos Coelho (aliás, antigo candidato do PSD à Amadora) à política nacional, o que na verdade seria uma bênção, pelo menos pela clarificação de opções que traria e pelo facto de afastar provavelmente algumas personagens exóticas da equação política, nacional ou local (mesmo se, eventualmente, trazendo outras...)..O desespero eleitoral é, portanto, mau conselheiro. E, quando os partidos se subjugam a uma simples aparência de supremacia televisiva, conveniente, fácil, o resultado não pode ser bom. Não faço ideia se o PCP acha que a Rússia é uma democracia... O curioso é o PSD entender que sim, sem qualquer entrave ou dificuldade..Este simplismo de análise - democracia é só ir-se a votos, democracia é ter mais um voto do que o adversário.... - é um inimigo terrível, interno e insidioso, como vem escrevendo há muitos anos, por exemplo, Daniel Innerarity. Esta simplificação, neste caso concreto, do que é um regime, avalorativa, só existe e é majorada na sua dimensão pública porque um determinado partido político preferiu a apetência da popularidade e da maximização mediática. Um partido político, até hoje, era - ou deveria ser - como que um editor de decência pública e de propostas políticas. Mediando eleitores e candidatos. Ao abandonar essa sua condição e natureza, como o faz aparentemente o PSD, qualquer partido torna-se simplesmente numa agência de supostos influencers. O mais que pode fazer, pelos vistos, são castings. E nem sequer de ideias..Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa