Misoginia(s)

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A discriminação das mulheres no mundo árabe (nuns países mais do que em outros) tem sido um dos tópicos centrais da abordagem de políticos, intelectuais, jornalistas e cidadãos comuns no chamado Ocidente (como se a Terra não fosse redonda...) na sequência da recente retirada americana do Afeganistão e do regresso ao poder dos talibãs. Em parte, tal justifica-se pelo facto de se há forças que levam a discriminação das mulheres até ao grau zero da barbárie, uma delas são os talibãs. Mas será que faz sentido a tendencial simplificação do islamismo produzida pelo pensamento ocidental, a pretexto desse e outros factos?

Essa tendência amplificou-se nos séculos XIX e XXX, quando os porta-vozes do referido pensamento "fixaram" que o véu islâmico usado pelas mulheres (hijab) é um "símbolo da opressão". A professora de História Árabe da Universidade de São Paulo (Brasil), Arlene Clemesha, discorda frontalmente. Segundo explica, o hijab, usado sobre o cabelo sem cobrir o rosto, é uma recomendação do Alcorão, mas não é obrigatório em todos os países árabes, sendo-o apenas nos países fundamentalistas. Quanto ao niqab e à burqa, são práticas tribais.

Ou seja, e como disse Clemesha em entrevista reproduzida pelo jornal digital brasileiro Opera Mundi, no último dia 14 de outubro, o véu não é a fonte da opressão feminina no mundo árabe. Esta vai muito além do hijab, pois existe mesmo nos países onde não é obrigatório.

Como em tudo na vida, é necessário recorrer à história para entender cabalmente os fenómenos. Desde o século XIX, houve vários movimentos de reforma do islão, que discutiam o que deveria ser conservado e o que poderia ser modernizado, alguns dos quais protagonizados por mulheres que liam e interpretavam o Corão sob uma perspetiva feminista.

O período do pan-arabismo constituiu uma época de conquistas para as mulheres do mundo árabe. A entrada em decadência desses direitos e o fortalecimento das forças mais retrógradas do islamismo deveu-se, segundo a professora brasileira, a três factos históricos: a Guerra dos Seis Dias, que representou uma grande derrota para um dos maiores defensores do pan-arabismo, o egípcio Abdel Nasser; a revolução islâmica no Irão, que colocou no poder os líderes religiosos do país; e o fortalecimento da Arábia Saudita, sentida em cima dos petrodólares, utilizados para fomentar o fundamentalismo islâmico.

Para aqueles que, como se diz na gíria, gostam de assobiar para o lado perante certas lições da história, recordo que o chamado Ocidente esteve por detrás da Guerra dos Seis Dias e também da aliança estratégica com a Arábia Saudita, ainda em plena vigência. Quanto ao Irão, como esquecer que a "modernidade" do referido país no tempo do xá era exclusiva das suas castas escolarizadas?

Respondendo, pois, à pergunta do parágrafo inicial desta coluna: a tendência para a simplificação e a uniformização da análise sobre a opressão feminina no mundo árabe não faz sentido. É preciso analisar caso a caso, país a país e período a período, tal como advoga Arlene Clemesha. Mas, mais do que isso, é fundamental abandonar o complexo de superioridade moral ocidental, começando por reconhecer que a misoginia islâmica é historicamente equivalente, nos seus fundamentos, à misoginia cristã, por exemplo; de igual modo, há que abdicar da pretensão de transportar para o mundo árabe o modelo de emancipação feminista ocidental, como se as mulheres árabes fossem incapazes de formular o seu próprio modelo.

Solidariedade não é imposição. A maior potência ocidental esteve 20 anos no Afeganistão e a estrutura social e cultural do país não mudou. Óbvia e previsivelmente.

Escritor e jornalista angolanopublicado em Portugal pela Caminho

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