“Minnesota Nice”

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Kamala Harris escolheu o lado afetivo e optou por um ticket “boa onda”. Seria mais previsível optar pela competência sóbria e efetiva de Josh Shapiro, o governador do mais relevante Estado indeciso do Midwest, a Pensilvânia: dava-lhe mais tração ao centro, aumentava probabilidades de vencer num must win state para as contas democratas e reforçava o peso político do dueto democrata.

Mas não: a candidata presidencial democrata preferiu a surpresa e escolheu Tim Walz. Menos político, sem pretensões reais de ser, ele próprio, candidato a presidente (ao contrário do que aconteceria se a escolha tivesse recaído em Shapiro, Buttigieg ou mesmo Kelly), Tim oferece a Kamala o caso de uma campanha solar, em contraste com a perspetiva sombria de voltar a estar Trump na Casa Branca - desta vez com J. D. Vance como número dois e um profundo desejo de vingança depois da derrota nunca assumida de 2020.

Com esta jogada inesperada Harris prolongou o momento positivo que tem dominado a sua campanha-relâmpago no pós-desistência de Joe Biden. A energia, a mobilização, a alegria: três noções-chave para percebermos o que terá levado Kamala a enveredar por este caminho nada evidente - pelo menos até ao momento em que aconteceu. Entusiasma a esquerda e não assusta o centro.

Walz é governador de um Estado fortemente democrata, enquanto Josh lidera a Pensilvânia, talvez o mais relevante de todos os swing states. Tim terá sido escolhido por uma história de vida muito singular e diversificada. Foi professor, treinador (Kamala até o trata por “Coach”), membro da Guarda Nacional do Exército durante um quarto de século. Foi eleito para o Congresso estadual do Minnesota num distrito congressional profundamente rural e republicano. E foi, claro, o autor da frase que até agora mais tem energizado a base democrata por Kamala e contra Trump, ao apelidar Donald e J. D. Vance de “tipos estranhos” (weird dudes).

Um tipo normal e muito sorridente

Walz era o underdog na final a três para o posto de vice-presidente. Josh Shapiro era o favorito, Mark Kelly a alternativa. Walz foi a escolha porque junta o melhor dos dois (é forte no eleitorado Midwest e tem credenciais militares) e porque será o democrata do Midwest que melhor chega ao americano comum. Comunica muito bem, tem um estilo afável e próximo.

Kamala gostou que ele, na entrevista final, tivesse falado em “alegria” ao referir-se à forma como via a possibilidade de embarcar numa candidatura presidencial democrata que possa obter uma maioria que trave o regresso de Trump. Os democratas veem em Walz a prova de que é possível perceber-se a América rural, profunda e pouco qualificada sem ter que ser hostil, zangado e divisivo, como têm sido Trump e J. D. Vance.

Tim Walz tem 60 anos, mas só duas décadas de vida política. Nesta fase de crítica “aos políticos de Washington, DC”, não ter um percurso político muito longo não é assim tão comprometedor. Até pode ter as suas vantagens. O resto é mérito de Tim e do seu temperamento adorável: afetuoso, versátil, com uma voz marcante e um ar de big dad energy - um pai carinhoso e cheio de energia, capaz de prolongar o caminho de mobilização da base democrata.

O governador do Minnesota junta características aparentemente contraditórias, mas potencialmente interessantes para a estratégia Harris até 5 de novembro: durante 12 anos foi um congressista estadual no Minnesota com um posicionamento moderado e capaz de chegar ao eleitorado republicano em temas como legitimidade de posse de armas (respeito pela Segunda Emenda) e prioridade aos temas das zonas rurais do Estado; mais recentemente, coloca-se na ala progressista, mas mantendo boa ligação ao centro moderado do Partido Democrata (Obama, Bill Clinton, Hillary Clinton e Joe Biden mostraram-se muito entusiasmados com a escolha de Walz). Kamala chama-lhe “Coach Walz” e lembra nos comícios que Tim foi eleito pelos seus alunos como “o mais inspirador de toda a faculdade”.

“Minnesota Nice” é estereótipo aplicado ao comportamento das pessoas do Estado governado por Tim. Significa que os residentes são extraordinariamente corteses, reservados e educados, em comparação com pessoas de outros Estados e mais parecidos com os seus vizinhos canadianos do Norte de Ontário. A expressão também aponta para uma aversão ao confronto e ao ruído. A tal “América positiva” que Kamala quer fazer contrastar com a “Carnificina Americana” que Trump propalou no seu discurso de posse, a 20 de janeiro de 2017.

O que está em causa nos Estados decisivos

Para compreendermos como serão mesmo detalhes a decidir esta eleição convém recuperar o que se passou nos sete Estados decisivos nas últimas duas eleições.
No Arizona, em 2020, Biden ganhou por apenas 10.500 votos. Em 2016, Trump ganhou a Hillary nesse Estado por 89 mil votos. Quanto à Geórgia, Joe Biden venceu em 2020 por 10.800 votos, sendo que quatro anos antes Trump bateu Hillary Clinton por 210 mil sufrágios.

Já no Nevada, em 2020 Biden ganhou por 34 mil votos, num Estado onde, em 2016, Hillary venceu por ainda menos: 27 mil apenas.

A Carolina do Norte não parecia estar nestas contas: em 2020, Trump venceu o Estado com 74.500 votos, bem menos do que tinha acontecido em 2016, quando Donald bateu Hillary na Carolina do Norte por 173 mil votos. Mas Kamala tem encurtado distâncias nesse Estado.

Vejamos, então, os três Estados da Rust Belt - os tais que bastarão a Kamala vencer para garantir a eleição, independentemente dos resultados dos outros quatro, desde que não perca qualquer dos Estados habitualmente democratas.

No Michigan, há quatro anos, Biden bateu Trump por 155 mil votos. Há oito, Trump bateu Hillary por apenas 10.700 votos. Já no Wisconsin, em 2020 Biden ganhou a Trump por apenas 20 mil votos; Trump ganhou a Hillary em 2016 por 22.500 votos.
E, finalmente, a Pensilvânia - o Estado onde Kamala e Walz apareceram juntos pela primeira vez e iniciaram o tour dos Estados decisivos (com Wisconsin e Michigan nas 24 horas seguintes): em 2020, vitória de Biden por 81 mil votos; em 2016, Trump ganhou por 45.500 votos.

Kamala em claro crescimento

A democrata passou para a frente no voto popular (45%-43% sobre Trump, com 2% para Kennedy e 1% para Stein), o que acaba por ser normal (desde 1992, só por uma vez, na reeleição de Bush filho, o candidato presidencial republicano teve mais votos que o candidato presidencial democrata).

Só que isso não nos diz quem vai ser eleito: uma diferença de dois pontos percentuais a favor dos democratas no voto popular está na linha de total indefinição sobre quem vai mesmo à frente [Hillary ganhou o voto popular em 2016 por +2,4% e não foi eleita; Biden ganhou o voto popular em 2020 por +4,5% e foi eleito por uma grande vantagem no Colégio Eleitoral (306-232)).

Interessa por isso saber como estão as coisas nos Estados decisivos (com base nos últimos dados do Silver Bulletin de Nate Silver). Ligeira vantagem de Kamala na Pensilvânia (45,7%/44,6%), no Nevada (44,6%/42,6%), no Wisconsin (46,3%/44,3%); ligeira vantagem de Trump na Geórgia (46,0%/45,0%), no Arizona (44,3%/44,0%) e na Carolina do Norte (45,9%/44,0%). Vantagem mais robusta de Kamala no Michigan (45,0%/42,4%). 

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