Memórias longínquas de abril de 1975
Passei o dia 25 de abril de 1975, até altas horas na madrugada seguinte, na Fundação Gulbenkian. A supervisão do curso da eleição para a Assembleia Constituinte e a agregação dos votos tiveram como quartel-general as instalações da Fundação e eu era um dos membros da Comissão Nacional de Eleições. Entretanto, passaram cinquenta anos, ou seja, décadas de desafios em distintas partes do mundo, incluindo a organização de outras eleições em vários outros países, uma das tarefas mais complicadas para quem tem de enfrentar situações políticas bastante instáveis. Por isso, o que aqui escrevo, neste dia de um aniversário especial, mais não é do que uma memória incompleta e algo difusa de um exercício exemplar. Não podia deixar de lembrar, porém, que se fez História nessa data.
Na noite eleitoral, com os computadores gigantes que havíamos instalado na Gulbenkian a mastigar os dados que iam chegando a Lisboa, Otelo Saraiva de Carvalho, então à frente do COPCON – Comando Operacional do Continente – aterra de helicóptero no jardim da Fundação. Queria saber como estava a decorrer a contagem dos votos, disse-nos. Fui um dos membros da CNE contactados. Lembro-me de duas mensagens que lhe transmiti: que estava tudo a avançar como previsto e que seria aconselhável que ele não se demorasse muito nas instalações, para que não houvesse qualquer acusação de interferência do COPCON no apuramento final. A integridade do processo era para o Presidente da CNE, o Juiz Conselheiro Adriano Vera Jardim, e para os outros membros da Comissão – 24, para além do presidente – a questão central. E foi garantida. Ninguém contestou o nosso trabalho.
Um trabalho imenso. Os cadernos eleitorais vindos dos tempos do fascismo registavam à volta de tão-somente 1,8 milhões de nomes. A nossa Comissão registou num mês, para mais em período de Natal e Ano Novo, de 9 de dezembro de 1974 a 8 de janeiro seguinte, mais de 5,5 milhões de eleitores. Se se pensar na confusão política que existia à época e na exiguidade dos meios disponíveis, pouco acima do lápis e da borracha, será justo considerar que o recenseamento foi um empreendimento extraordinário e uma resposta cidadã impressionante. Os povos, quando acreditam na política e na verdade das eleições, participam a sério. Inscreveram-se massivamente e não faltaram à chamada. Cerca de 92% dos inscritos votaram.
A CNE fora constituída no último trimestre de 1974. De início, reinou uma confusão enorme. Todos os partidos tinham assento na Comissão, e eram muitos nessa altura, sem se perceber que peso tinha cada um deles. Os seus representantes falavam pelos cotovelos, faziam as propostas mais extravagantes e nada avançava. Cada sessão era uma balbúrdia. Vera Jardim e os que como eu não representavam nenhum partido ou qualquer agrupamento de amigos, o que alguns eram apenas, aconselhámos o governo, então chefiado por Vasco Gonçalves, a alterar a composição da CNE. Sucesso, os partidos deixaram de a integrar.
A Comissão começou então a produzir resultados. Mas a contestação por parte de alguns dos partidos fazia hesitar Vasco Gonçalves, o Governo e as Forças Armadas. Isso não nos impediu de continuar a exercer as nossas funções, agora sem burburinho. Atrasou, no entanto, a tomada de posse formal dos seus membros. Legalmente, a posse foi apenas conferida a 27 de fevereiro de 1975, apenas a dois meses do ato eleitoral.
Os 92% de 1975 não podem ser comparados com os cerca de 60% de participação nas legislativas de 10 de março de 2024 e ainda menos com as europeias de 9 de junho do mesmo ano – um pouco mais de 36% de votantes. Quando falo nestes números, perguntam-me o que explicará agora tamanha abstenção. Em 1975, os cadernos eleitorais estavam atualizados. Acontecerá o mesmo agora?
Pode-se pensar noutras razões. Muitos estão convencidos que os políticos de hoje não prestam a devida atenção à opinião e às reais aspirações das pessoas, que as listas cá em baixo são preenchidas por desconhecidos cujo mérito maior é dizerem que sim ao Diktat dos líderes lá em cima, que tudo nada mais é do que a parte visível de redes de contactos, de jogos de influência, de compadrios e de tempos televisivos. E que cada político é mais do mesmo, nada muda, menos acrescenta, pois seriam todos iguais.
A primeira CNE trabalhou para um eleitorado que acreditava na liberdade de escolha e na sinceridade dos dirigentes dos grandes partidos. Por isso, tivemos um resultado claro, que apagou os farfalhudos de então. Hoje, o quadro político tem muitos laivos de cinismo e de oportunismo. Mas também há gente acertada. De qualquer modo, não se pode comparar 1975 com 2025.
Conselheiro em segurança Internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU