Memórias de Merkel
Vale a pena ler a autobiografia de Angela Merkel, Liberdade, lançada com grande pompa na terça-feira passada, não só em Berlim, onde a ex-chanceler alemã esteve horas a assinar livros, como a nível mundial, não faltando entrevistas promocionais, desde o El País à BBC. Vale a pena ler estas memóris não por conterem revelações extraordinárias sobre os bastidores da política internacional, mas sim por nos oferecerem acesso a alguma intimidade da cientista que cresceu na RDA e foi a mais duradoura dos líderes da RFA, sobretudo a forma como revisita a sua relação com líderes ainda no ativo, caso do presidente russo Vladimir Putin, ou de regresso ao ativo, como Donald Trump, a partir de 20 de janeiro de novo o presidente americano.
Não escondo a minha admiração por Merkel, que começou cedo. Fiz a reportagem para o DN das eleições de 2005 onde foi eleita pela primeira vez. Derrotou então o chanceler social-democrata Gerhard Schröder, desfazendo a ideia de que não tinha carisma, que era mera criação de Helmut Khol, o obreiro da reunificação alemã de 1990, depois da queda do Muro de Berlim que condenou a República Democrática Alemã e deu novo fulgor à República Federal da Alemanha. Merkel venceu depois mais três eleições, e saiu por vontade própria.
Nos 16 anos de governo, Merkel teve de lidar com sucessivas crises, até a causada pela pandemia. Para os povos do Sul da Europa ficou para sempre associada às medidas de austeridade que a Alemanha impôs para resolver a crise do euro. Outros responsabilizam-na pelos problemas migratórios da Europa, ao abrir portas em 2015 a um milhão de refugiados sírios. E não falta quem a considere permissiva com Putin, deixando criar-se uma excessiva dependência energética em relação à Rússia, insustentável depois da invasão da Ucrânia.
De forma elegante, e sobretudo inteligente, as memórias de Merkel desfazem essas acusações em grande medida, nomeadamente pondo as decisões no contexto da época, como é o caso da Troika.
Mas sobretudo, e estando nós em 2024, que figuras políticas na Europa ou no mundo ganham hoje em comparação com Merkel? No seu país, por exemplo, o seu sucessor, o social-democrata Olaf Scholz, não conseguiu sequer completar os primeiros quatro anos de governação e foi obrigado a agendar eleições antecipadas, num contexto de estagnação económica alemã que ameaça afetar toda a União Europeia.
Visitei, durante a tal campanha de 2005, Templin, a aldeia em que a futura chanceler cresceu, e em cujos bosques procurava mirtilos, como a própria conta na autobiografia editada em Portugal pela Objectiva. Conversei na época com alguns que se lembravam dela jovem e promissora. E entrevistei o primeiro dos seus biógrafos. Depois li outras biografias dela, de vários tons. E fui acompanhando a sua carreira política.
O nível intelectual, admita-se, é extraordinário, uma cientista. Também na ética é admirável. E ainda hoje é relembrada a frugalidade de uma vida que a levava a ir até à mercearia da esquina junto da casa em Berlim mesmo quando era chefe de governo e estava entre duas visitas oficiais. Confirmo ao ler este Liberdade que não há governantes perfeitos, mas Merkel é sem dúvida a mulher que mais marcou a história europeia deste início de século XXI. E isso não é pouco.
Diretor adjunto do Diário de Notícias