Marrocos: o Discurso do Trono

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Celebrou-se no passado dia 30 de julho o 22.º aniversário da entronização de Mohamed VI enquanto rei de Marrocos e também enquanto Amir"ul Muminin, líder dos crentes, um título oficioso mas com peso oficial no contexto regional, desde Tânger a Bissau e que muita influência permite ao monarca e à sua diplomacia, a cada deslocação à África Ocidental e ao Sahel, por exemplo.

Este dia assistiu à chamada Festa do Trono, cujo momento alto acontece durante o discurso do monarca ao reino, um directo televisivo e radiofónico que pára o trânsito e faz ouvirem-se as moscas nos cafés e nas pequenas épiceries de bairro, que vendem tudo com apenas um torrador de pevides e uma televisão ou transístor sempre ligados. Havia neste ano uma ansiedade crescente, já que se tratava do primeiro discurso com um fundo de guerra no sul profundo, em 22 anos.

A grande surpresa, para além do primeiro adiamento da transmissão do discurso por 24 horas, desde 1956, transmitido no sábado 31 a partir de Fez, foram os escassos 15 minutos desta comunicação, comparados com os habituais 40 ou 50 minutos em anos anteriores, cuja leitura se concluía sempre com a fadiga patente em "suores azuis".

Sendo um discurso tradicionalmente dividido entre resumo interno do ano e política externa, a pandemia concentrou em si as preocupações domésticas e a diplomacia mais próxima, as atenções do grosso do discurso, que serve também de barómetro regional para se sentir a temperatura sobre o próximo ano marroquino. A mensagem para a Argélia foi "a segurança argelina é a segurança marroquina" e "nunca nos vamos entender enquanto tivermos fronteiras terrestres fechadas". Marrocos sabe que só uma solução negociada poderá mitigar os ânimos da/na questão sarauí e faz sabê-lo ao "primo magrebino", o qual certamente verá no gesto mera retórica.

A normal intransigência argelina no particular sarauí é também fruto da alavanca que o assunto permite para a afirmação do líder do momento, e o presidente Abdelmadjid Tebboune no cargo há menos de dois anos, com abstenções pouco legitimadoras na sua eleição, no referendo de aprovação à nova Constituição (principal aposta presidencial) e, mais recentemente, nas legislativas antecipadas de 12 de junho, não lhe permite "largar o osso" e embarcar em negociações. Se Tebboune perde o Sahara, perde a presidência.

O mesmo para Mohamed VI, que não corre o risco da demissão, mas de não ficar para a história como O Unificador e sobretudo de não ter aproveitado a boleia de período favorável, cuja convulsão social Primavera Árabe deixou claro que a Região MENA, Middle East & North Africa, não precisa nem lhe é favorável novos países, mas sim reorganizações administrativas dos territórios e novas constituições, sobretudo que garantam efectiva separação de poderes. No fundo, que permitam uma mudança de paradigma, onde o chefe de Estado apenas interfira no que está autorizado e as instituições se sobreponham ao soba. Bem sei, impossível na África dos xerifes e dos Irmãos Dalton!

Por isso mesmo, prevejo que este decénio veja uma solução interessante para a questão sarauí, num híbrido do tipo Porto Rico, onde ambas as partes poderão clamar vitória perante os respectivos públicos. Só falta atribuir-lhe um nome!

Politólogo/arabista
www.maghreb-machrek.pt
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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