Marcelo é o novo Santos Silva de Ventura

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Dilma Rousseff foi alvo de um impeachment no Brasil devido às “pedaladas fiscais”, aquilo que noutras paragens não passaria de gestão orçamental criativa. E seria decerto visto como questão de somenos em Portugal, cujo quadro constitucional torna difícil destituir o Presidente da República seja lá pelo que for.

O artigo 130.º da Constituição prevê que o Presidente da República só responde perante tribunais comuns, “por crimes estranhos ao exercício das suas funções”, depois de findo o mandato, o que resultaria numa situação estarrecedora se um eleito para a chefia do Estado se visse fortemente indiciado de um crime de sangue quando faltasse cinco anos para poder ser julgado. Mas também se lê nesse artigo que responderá perante o Supremo Tribunal de Justiça por crimes praticados no exercício das funções, cabendo a iniciativa do processo à Assembleia da República, mediante proposta de um quinto dos deputados e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos que estiverem em efetividade de funções.

Quando André Ventura anuncia que o seu partido vai processar Marcelo Rebelo de Sousa por traição à pátria está consciente de dois factos. O primeiro é que tem a Matemática a seu favor: os eleitores permitiram que o Chega tenha 50 deputados, superando a percentagem exegível para apresentar a proposta. E o segundo é que sabe o que dita a Lógica: não existe qualquer hipótese de ter consigo a quantidade de parlamentares necessária para a aprovação, pois acusar o Chefe de Estado de ter cometido um crime não é propriamente o mesmo que eliminar portagens em autoestradas.

É possível que o líder do Chega creia que o Presidente da República traiu a pátria ao sugerir que Portugal deve pagar reparações às ex-colónias pelos atos que praticou, seja há uns quantos séculos, aquando do tráfico atlântico de escravos, ou há pouco mais do que uma mão-cheia de décadas, durante a Guerra Colonial. Mas sabe que a iniciativa está votada ao insucesso, pela matéria de facto - não faltam juristas de renome a deixar claro que as palavras de Marcelo, por muito questionáveis ou despropositadas que possam ser, não se inscrevem no que é tipificado enquanto traição à pátria - e pela impossibilidade prática de tal processo vir a avançar na Assembleia da República.

Mesmo muito evidente é que o líder do Chega tirou proveito da deriva reparacionista de Belém para encontrar um substituto de Augusto Santos Silva, o ex-presidente da Assembleia da República que foi um dos grandes responsáveis pela subida exponencial do seu partido nas últimas legislativas. Quando Marcelo traz para o palco central um tema controverso, e que ganharia em ser tratado com recato e ponderação, não pode ignorar que essas declarações serão aproveitadas por quem já demonstrou ser mestre a encontrar nas palavras alheias o efeito da alavanca capaz de mover o mundo que foi descrito por Arquimedes.  

Viabilizar os projetos de lei do PS com que o Chega concorda pode ser uma demonstração de força, pode desgastar a Aliança Democrática e o Governo, mas acarreta riscos eleitorais. Encabeçar a luta contra as reparações, pelo contrário, pode render já nas europeias de 9 de junho.

Grande repórter do Diário de Notícias

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