Manifesto por “Uma Reforma na Justiça em Defesa do Estado Democrático”: ainda há muito caminho a percorrer
Alguns meses decorridos sobre a publicitação do Manifesto por Uma Reforma da Justiça em Defesa do Estado Democrático, e de às primeiras 50 pessoas signatárias se terem associado novos grupos de 50, as possibilidades do seu sucesso mantêm-se complexas. O balanço possível entre os fatores positivos e as dificuldades, desafios, que persistem, mostra que muito caminho há ainda a percorrer.
Sobre os fatores positivos há três que me parecem fundamentais:
- em primeiro lugar, a existência do próprio Manifesto como expressão da preocupação e inquietação perante violações sucessivas dos direitos, liberdades e garantias na nossa sociedade.
Este documento teve na sua base as conversas entre várias pessoas de diferentes idades, umas que lutaram e foram torturadas na defesa de um Portugal democrático e outras que já cresceram ou viveram toda a sua vida em liberdade. Umas e outras partilham a necessidade, a responsabilidade cívica e política, de contribuírem para a promoção de um debate público alargado e transversal sobre o funcionamento “perverso” da Justiça, sobre os riscos sérios que representa para todos e todas nós, para a nossa democracia. Um debate que seja consequente e, por isso, capaz de promover as condições para um consenso social e político sobre as mudanças necessárias.
Quando as democracias enfrentam a crescente e tão perigosa polarização das posições sociais e políticas, que divide as sociedades entre o “nós” personificado nos messias regeneradores, e os “outros” identificados com os supostos falhanços e fragilidades dos sistemas democráticos, a existência de um Manifesto que junta pessoas de diferentes gerações, com e sem ligação partidária, de todos os quadrantes políticos e, por isso, com visões distintas e até contraditórias da sociedade, assume um caráter transcendente.
A experiência que estamos a viver no desenvolvimento deste Manifesto pode bem ser um contributo para parte do antídoto no combate às derivas populistas e antidemocráticas que corroem as democracias por dentro. Até porque este é também um desafio pela restauração da confiança nas instituições democráticas.
Não é necessário recorrermos à História, ainda que seja por princípio um bem em si mesmo, para percebermos que o que tem sustentado as democracias em diferentes países da Europa, bem como nos Estados Unidos ou no Brasil, é a mobilização da sociedade, em particular das mulheres e dos jovens, na defesa de valores e de princípios democráticos essenciais a uma sociedade onde todas as pessoas têm lugar. Cresci a acreditar no poder e na responsabilidade da cidadania como fatores determinantes da qualidade da organização política e do desenvolvimento das sociedades. É neste quadro e espírito que tenho a honra e sinto orgulho em ser parte no Manifesto dos 50. Não podemos ter de viver a experiência de um Trump ou Bolsonaro para que os sinos ou os alarmes toquem finalmente a rebate!
O segundo resultado positivo decorre da capacidade que este documento tem tido de aumentar e alargar a compreensão sobre o problema da Justiça e a necessidade de ser debatida e consensualizada a sua reforma. O aprofundamento contínuo deste tema permite que hoje sejam aceites algumas posições que há uns anos seriam consideradas gravíssimas, e sem hipóteses de apoio.
Não são de agora os fenómenos de mediatização de detenções, condenações em praça pública sem apelo nem agravo, violações do segredo de justiça com ampla cobertura de alguma comunicação social, e de invasões domiciliárias que destroem parcial ou totalmente a vida de cidadãos.
Concordo com a responsabilidade dos partidos na incapacidade de enfrentarem os vários problemas que o Sistema de Justiça foi acumulando, seja por questões de “oportunidade”, seja por “visões paroquiais”. No entanto, também é verdade que não existiu, até este Manifesto, a possibilidade de gerar qualquer movimento cívico na defesa de uma reforma da Justiça, mesmo se foram produzidos vários livros e trabalhos de investigação sobre o tema.
Seja de quem for, a existência do medo, mais ainda do medo do Sistema de Justiça, é um dos maiores e graves sintomas que ameaçam o coração da democracia. A apresentação do Manifesto aos líderes dos partidos políticos democráticos e aos mais altos representantes e responsáveis políticos do nosso país é, ao mesmo tempo, um sinal de apoio e sobretudo de exigência para que seja possível consensualizar uma reforma que responda à imprescindível confiança que todos e todas nós, individual e coletivamente, precisamos de ter na Justiça.
Em terceiro lugar, o papel determinante de alguns órgãos de comunicação social neste processo. Muito mais do que na divulgação do Manifesto, na voz que tem sido dada desde o início aos temas que pretende colocar na agenda política. Este facto é tão mais importante quando sabemos as dificuldades que a comunicação social e o jornalismo enfrentam na sua capacidade de assegurarem o rigor, a qualidade, as condições de trabalho dos profissionais, essenciais na luta contra o espírito tabloide e o universo da desinforma- ção. A presença de jornalistas de diferentes gerações nos vários grupos de 50 é, só por si, motivo de esperança, confiança e, sem dúvida, de orgulho.
As dificuldades, desafios que subsistem e que nos impelem a não abrandar no trabalho necessário ao cumprimento dos objetivos subjacentes ao Manifesto são, no essencial, duas:
- por um lado, não existe ainda um compromisso dos partidos políticos democráticos para a criação das condições necessárias à convergência para uma reforma da Justiça.
O debate que se arrasta sobre as condições necessárias à aprovação do próximo Orçamento do Estado é uma oportunidade importante, porque qualquer reforma implica a definição de meios para a sua implementação, nomeadamente financeiros. Em segundo lugar, porque uma das condições necessárias à sua aprovação, na ausência de uma maioria absoluta, é a capacidade de partidos do Governo e da oposição trabalharem propostas conjuntas. Não é fácil, mas é exatamente por não ser fácil que este Manifesto existe e procura criar, para além de aproveitar, todas as oportunidades até atingir os seus objetivos.
Por outro lado, e não menos relevante, os que se opõem ao Manifesto são em larga medida poderes fáticos cujos protagonistas nem sempre é possível identificar. O que sabemos é que nos protagonistas identificáveis há personalidades com elevada responsabilidade dentro do Sistema de Justiça, como a procuradora-Geral da República (PGR), que, alheia ao seu papel institucional, continua incapaz de ouvir e perceber as críticas, as exigências que muitos fazem para a reforma da Justiça, persiste em ataques caluniosos e infundados, e demonstra uma arrogância imprópria, incompatível com um Estado de Direito. Se a intervenção que proferiu esta semana seria sempre gravíssima, o facto de o ter feito por ocasião da tomada de posse dos novos procuradores-gerais-adjuntos e no que considera ser a sua última cerimónia oficial obriga a que seja seriamente discutido o quadro da nomeação do próximo ou da próxima PGR. Se alguém colocou o MP no centro da discussão da Reforma da Justiça, essa pessoa foi a PGR com a sua soberba, que a coloca no centro do mundo, como tão certeiramente afirmou Maria de Lurdes Rodrigues.
Firmeza nas convicções que estão na origem deste Manifesto e persistência no diálogo político. Este é o longo caminho que ainda temos pela frente.