Mais vale nada
O ministro da Economia vai hoje receber os "jovens climáticos", como chamam ao movimento que exige que mudemos de vida para salvar a vida. Que lhes irá dizer Costa Silva? Que tem para prometer? Há alguma promessa possível depois de tanta jura em vão?
Quando vi os jovens em luta "contra o fóssil"- ou seja, contra a continuação da utilização de fontes de energia como o petróleo, o carvão e o gás natural, responsáveis pelo sobreaquecimento da Terra -, que nos últimos dias ocuparam várias escolas, a exigir a demissão do ministro da Economia, António Costa Silva, pensei: será que eles sabem? Assumo que não.
Normal: eu, que tenho muito mais obrigação de saber, também não sabia, até ver A Vida e o Tempo de Sita Valles, documentário sobre a médica e comunista angolana desaparecida em 1977. Presumivelmente executada, crê-se que antes de completar 26 anos, pelas forças governamentais de Angola ou por alguém com elas alinhado, na sequência dos acontecimentos de 27 de maio de 1977.
António Costa Silva, nascido em Angola em 1952, é um dos entrevistados no documentário. Também ele, como Sita, era um lutador anti-colonialista e um revolucionário; também ele tinha 25 anos ao ser preso pelos mesmos que a prenderam. Como se presume que ela terá sido, foi torturado; ao contrário dela, sobreviveu - não sabe porquê.
Chegou, conta, a ser colocado, vendado, ante um pelotão de fuzilamento, depois de lhe darem uma folha para escrever o testamento. Ouviu o aperrar das armas. Mas os tiros não vieram; nunca lhe explicaram a razão. Outros, presos políticos como ele, passaram pelo mesmo - há mais relatos assim no filme.
"Foi um dia que enfrentei com grande tranquilidade, penso que a morte faz parte da vida e algum dia temos que morrer, e eu pensei, bem, chegou esse dia", disse numa entrevista à Lusa, em 2020. No testamento, conta, escreveu: "A vida é linda."
Diz também: "A minha vida depois disso é uma espécie de bónus, poderia praticamente ter ficado ali, há coisas que nos condicionam para sempre."
Não sei se é por causa disso - não do pelotão de fuzilamento, nem de ter aos 25 anos sido preso e torturado, mas por saber o que é querer mudar o mundo e estar disposto a dar, e quase ter dado, tudo por essa determinação -, que Costa Silva se disponibilizou a receber esta terça-feira os jovens que querem a sua demissão. Certo é que não me lembro de alguma vez ver um ministro a tão rapidamente aceitar receber um movimento de protesto, muito menos um movimento de jovens.
Também não é comum sentir o que senti ao ouvir o seu relato no documentário - uma espécie de estoicismo tranquilo, simultaneamente desassombrado e doce, que poderá até ser confundido com ingenuidade, e que me comoveu. Como se houvesse ali um campo de cinzas, onde antes houvera fulgor e luta.
É estranho, sei, estar a falar assim, com este despudor, de uma pessoa com quem nunca sequer me cruzei, como se fosse uma personagem de ficção - mas personagens de ficção é o que todos somos, uns para os outros e até para para nós próprios; o je est un autre (eu é um outro) de Rimbaud é lei universal.
Na entrevista citada, Costa Silva explica ainda que era "muito miúdo" quando começou a reparar nos homens negros, denominados "contratados", a passar, acorrentados, em camiões "para trabalharem" no norte do país. Tratava-se de trabalhadores forçados - Portugal só aboliu a figura legal do trabalho forçado em 1961, e mesmo assim esse crime tenebroso ter-se-á prolongado até 1974. A criança que foi, proclama o governante, ficou muito revoltada e perguntou aos adultos o que se passava. Terá sido a primeira consciencialização da injustiça e da inaceitabilidade do regime colonial, contra o qual viria a combater politicamente.
Quero crer que este homem, que fará 70 anos daqui a pouco mais de uma semana, consegue olhar para estes miúdos que sobem para telhados e fecham escolas e se vê - espero, quero que se veja. E ao desespero que sentiu perante o destino daqueles homens acorrentados e a sua impotência para os salvar.
Espero também que, ao contrário de tanta gente que insulta e menoriza os "jovens climáticos", como os apelidam nas notícias, seja capaz desse ato derrisório de autocrueldade que é ver-se do outro lado. O lado da injustiça, dos que deviam agir e não agem, o lado do poder e do deixa andar, dos que fecham os olhos e arranjam desculpas, dizem "ah mas é muito complicado, isso não é como vocês pensam, não se carrega num botão e já está, como seria depois?"
O lado dos que desistiram de salvar o mundo, e se limitam a gerir. Recursos, empresas, países; o hábito. Porque é assim que esses jovens o veem, nos veem. E têm toda a razão.
De cada vez que alguém acusa estes miúdos de não saberem o que estão a exigir, de não serem capazes de viver sem o conforto e os gadgets que o consumismo da sociedade de abundância e desperdício lhes põe à disposição, é a nós que está (estamos) a acusar - porque nada fizemos para que assim não fosse. Porque somos nós que não temos imaginação para nos vermos a - e decerto não quisemos - viver de outra forma.
E no entanto o rapaz de 25 anos que numa praia de Angola ouviu o som metálico da morte e pensou "é agora", que assegura sentir-se desde então em tempo emprestado, tem a obrigação de perceber que não pode apenas dizer "ah, eu também já quis salvar o mundo, sabem?" Não chega condescendência, não chega fazer de avô simpático.
Não chega, como tantas vezes já repetiu a incrível Greta Thunberg, dizer as palavras. Para isso mais vale estar calado, mais vale nada.
Dizer o quê, então? Íamos a tempo, mesmo que começássemos hoje, já, esta terça-feira, a fazer tudo o que é preciso fazer?
Ao contrário de António Costa Silva, ou de António Guterres, não tenho de olhar nos olhos estes miúdos. Não tenho de prometer nada. Posso pois dizer que não nos estou a ver a sair desta praia, deste tempo cada vez mais emprestado. Que oiço, como na canção dos GNR, o coro das crianças: "Olha pró que eu faço / Mais vale nunca / Nunca aprender / Mais vale nada / Nunca mais querer / Mais vale nunca mais crescer."