Mais uma oportunidade perdida?

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Quando é que ver os vários lados de uma questão se tornou um ato raro e radical? Quando é que apresentar razões para uma tensão que resulta em atos criminosos se tornou sinónimo de desculpabilização? Quando é que olhar para a dor de uns se tornou equivalente a não conseguirmos olhar para a dor de outros? É perturbador perceber que, no jogo digital e mediático em que somos obrigados a marcar presença, é difícil que se compreenda que se possa estar solidário com o motorista gravemente ferido, condenar os danos em veículos e materiais urbanos enquanto óbvios atos criminosos, e ao mesmo tempo considerar que é determinante olhar para o problema não só do ponto de vista da segurança, mas também da inclusão social e da discriminação.

A tensão é alimentada todos os dias por oportunidades vedadas, serviços que não funcionam, sensação de abandono. É alimentada por abordagens aparentemente desmesuradas e por mortes sem explicação. Daí resulta a revolta social que vai borbulhando nas pessoas, e que encontra nestes eventos a oportunidade ideal para se fazer ouvir - sem dúvida, aproveitada por grupos de criminosos, cujo objetivo único é destruir.

Mas a tensão é alimentada todo o ano também por longas horas de trabalho e de transportes, para salários demasiados magros nos trabalhos que vão sobrando. A pobreza atinge 2,1 milhões de pessoas em Portugal, dizem-nos os dados da Pordata deste mês, e não é só nestes bairros “municipais”, “sociais”, ou nas “zonas urbanas sensíveis” que existe (a nomenclatura foi um dos grandes tópicos desta semana).
Mas existe também aqui, e tem diferentes contornos dependendo do contexto e da comunidade - o racismo, enquanto estrutura de poder que herdámos e que alimentámos, não pode ser ignorado.

Ninguém está imune aos preconceitos inconscientes, que são crenças generalizadas que vamos apreendendo desde bebés, a favor ou contra determinados géneros, grupos étnico-sociais, orientações sexuais ou classes sociais. Estes vieses fazem parte do funcionamento natural do cérebro humano, e existem para nos proteger, para nos ajudar a identificar rapidamente uma situação de insegurança, para sabermos em quem confiar ou não, levando-nos a tomar a melhor decisão para nos deixar a salvo. O problema é que estes vieses não agem com base em informação factual e rigorosa, mas sim com base nas tais perceções que vamos adquirindo.

Se ninguém está a salvo de erros de perceção, certamente que um agente de segurança, que lida com situações de stress e de pressão ao segundo, também não estará. Tal como um juiz, um professor, ou um qualquer profissional que tenha de tomar uma decisão. 

Falta-nos saber os contornos exatos da morte de Odair Moniz, e sobre isso pouco falta especular. Mas é de lamentar que não se aproveite esta infelicidade para se fazer uma reflexão coletiva sobre um problema maior, que sempre cá esteve, e que permanecerá quando o fluxo mediático virar para outro tema.

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