Mais painéis solares e menos ogivas nucleares

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É verdade que o presidente chinês não veio à cimeira da COP26. Mas também é um facto que Xi Jinping não viaja para fora do país desde janeiro de 2020, por causa de uma interpretação oficial extraordinariamente apertada do que deve ser o combate à pandemia do coronavírus.

O presidente americano aproveitou a ausência do seu homólogo para o criticar abertamente. Penso que foi um erro. Joe Biden deve procurar construir pontes com a China em vez de novas frentes de conflito. Já existem pontos de fricção suficientes entre os dois países. Não é prudente acrescentar mais este.

O combate global contra as alterações climáticas precisa da cooperação de todos. Incluindo da China, que emite cerca de um quarto do total mundial de dióxido de carbono, embora em termos per capita o impacto de cada chinês seja metade do valor médio de cada americano. Esta constatação lembra-nos, aliás, que são os mais ricos quem mais contribui para o aquecimento global e que uma boa parte da resposta tem de assentar nessa constatação.

Também é preciso acrescentar que o presidente Xi não ignorou a cimeira. Enviou uma comunicação escrita, que me pareceu relevante a vários títulos.

Primeiro, porque frisou ser necessário respeitar os compromissos já assumidos, quer na Convenção da ONU sobre as Mudanças Climáticas quer no Acordo de Paris de 2015. Essa afirmação constituiu um apelo claro ao reforço das respostas multilaterais, através do sistema das Nações Unidas. Foi, igualmente, uma chamada ao aprofundamento da confiança mútua entre os Estados, que tanta falta faz. Esta é uma questão fundamental, que o secretário-geral da ONU poderá explorar, de modo a tornar o seu papel mais central e mais orientado para a ação.

Segundo, porque mencionou a necessidade de um esforço suplementar de todos, em particular dos países mais desenvolvidos. Aqui, referiu-se à ajuda que foi prometida e que deveria ser dada aos países mais pobres, para atenuar os efeitos catastróficos das alterações climáticas e aumentar de maneira significativa o acesso dos seus povos a fontes renováveis de energia.

Terceiro, porque disse claramente que a comunidade das nações tem de acelerar a transição verde. Trata-se, no seu entender, de aumentar os investimentos na ciência e na tecnologia, com vista a conseguir as transformações industriais, bem como os tipos de energia e de consumo que sejam mais adequados à salvaguarda do ambiente, sem pôr em causa o desenvolvimento económico. Há aqui uma meia-verdade, baseada na teoria que defende que os progressos científicos são a melhor resposta aos desafios ambientais. Esta posição não tem em conta que as políticas de crescimento económico devem mudar e que os comportamentos das pessoas nos países mais ricos, incluindo na China, não podem ter como bitola apenas o aumento contínuo do consumo e do bem-estar material.

Na parte final da sua comunicação, Xi Jinping referiu um certo número de medidas que o seu governo já está a levar a cabo ou irá adotar para reduzir a pegada carbónica. Não o diz agora, mas já havia informado a Assembleia Geral da ONU que a ambição oficial chinesa é a de chegar à neutralidade carbónica em 2060. A isso poder-se-ia responder que a China tem meios para conseguir essa neutralidade bem mais cedo. E deveria fazê-lo, aproveitando o momento para mostrar que também a China pode desempenhar um papel de liderança nesta área. O país dispõe dos conhecimentos e dos meios necessários. Tratar-se-ia de investir menos nas indústrias bélicas e mais na transformação energética. Uma nação que planeia ter um arsenal nuclear, em 2030, de pelo menos mil ogivas nucleares - cinco vezes mais do que em 2020 - e todo um arsenal de armas hipersónicas, de bombardeiros, porta-aviões e submarinos com capacidade nuclear, tem todas as condições para ser também um exemplo em matéria de gestão das emissões de carbono. É tempo de mostrar que a defesa do planeta e a paz são duas questões interligadas. Liderança global deveria manifestar-se assim.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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